- anteontem
Neste primeiro capítulo, investigamos que no Brasil não vigora um símbolo forte e essencial de identidade, mas, sim, alegorias fragmentadas do que é ser brasileiro. Em seguida, discutimos como esse sentimento de identificação dos brasileiros com seu país passa menos pela nossa história concreta e seus eventos políticos do que pela imaginação, ou seja, pela natureza e pela cultura.
Categoria
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DiversãoTranscrição
00:00Transcrição e Legendas Pedro Negri
00:30A Carta de Pedro Vasca Minha, que é o primeiro documento em língua portuguesa sobre essa região, a que hoje chamamos Brasil,
00:58ao lê-la, a gente percebe que se trata de uma belíssima alegoria.
01:04Quer dizer, nada tem a ver com o real, tendo tudo a ver com o real.
01:10Quando vocês falam em alegorias, já ficou uma coisa plural, uma ideia dividida, fracionada,
01:17todo o contrário dos símbolos, do simbólico.
01:20E mesmo de mito, eu acho que a gente falar em alegorias do Brasil é mais mutável, é mais contemporâneo.
01:29Que a alegoria, ela dá conta, não da história de um determinado momento.
01:36Ela vai dar conta de uma história cuja duração é bastante longa e parece que nunca termina.
01:43Isso já está presente naquele imaginário barroco, que veio de Portugal e que depois se tropicaliza aqui
01:52e que se converte naquela alegoria carnavalesca, que é você não ter aquela pureza do símbolo,
02:00mas você ter camadas de interpretação sobrepostas.
02:05Engraçado que a primeira alegoria que vem na cabeça é da escola de samba, né?
02:09É de uma representação relativa a um enredo.
02:14E parece que nós somos, volta e meia a isso, um grande enredo onde a gente tem que dar conta
02:18dessas alegorias que as alas parecem que não se comunicam muito bem.
02:22Mas que quando você vê o enredo todo passando, ela faz um grande sentido, né?
02:27Como é que a gente pode ser violento e ter uma democracia racial?
02:31Não, justamente por isso, né?
02:33O jeitinho brasileiro tem a ver com o futebol, com esse corpo, ou todos esses clichês, de certa forma,
02:40eles vão se construindo em camadas, mas ao mesmo tempo eles funcionam muito bem,
02:46postos um do lado do outro para o bem e para o mal.
02:49É possível ver o Brasil numa alegoria de escola de samba.
02:54O que é, portanto?
02:55Uma estrutura muito frágil, ferragens moldadas, reaproveitadas de outros carnavais,
03:04uma estrutura precária de madeira, sobre a qual, no entanto, se coloca tudo.
03:10Que cara tem o Brasil, né?
03:23Se eu olho para a história, ele tem uma cara libertária, ele tem uma cara republicana,
03:29mas ele tem uma cara escravagista, violenta, corrupta, racista,
03:35mas ele também tem uma cara generosa, sabe?
03:40Que qualquer... como é que eu vou pensar uma única?
03:43Não tem... ele é isso, né?
03:45Ele é essa...
03:47E essa coisa que nunca vai ser apreendida numa definição literal.
03:53Se você pensar no Drummond, o Drummond dizia
03:55é essa parte de mim fora de mim, né?
03:59Que me persegue.
04:00O segredo para entender um pouco a vida social tem a ver com essas tentativas
04:03que sociedades diferentes fazem de se representarem a si mesmas como dotadas de sentido
04:08e não apenas como um conjunto prático de pessoas que interagem na economia, na política e em outras atividades.
04:18Eu acho que é exatamente nessa passagem do povo enquanto dimensão demográfica,
04:22um povo enquanto dimensão expressiva do ponto de vista cultural,
04:26é que a discussão de identidade ganha sentido, né?
04:28No Brasil isso é muito complexo, porque...
04:32Quer dizer, onde é que nós não construímos identidade comum?
04:36Através da política.
04:37Quer dizer, a política não se configurou, na experiência brasileira,
04:40como alguma coisa que nos distinguisse.
04:45E a ideia brasileira é um pouco como o Torquato dizia,
04:48quer dizer, a gente tem sempre um pouco a impressão de uma geleia geral,
04:51em que as posições são intercambiáveis e nós, macunaímicamente,
04:54e mimeticamente nós trocamos de lado, nos abraçamos, nos separamos,
04:58e não há marcadores.
05:00O povo brasileiro ficou com uma espécie de enigma,
05:03quer dizer, é como se fosse uma esfinge
05:07que olhasse para o território, para o Estado e dizia,
05:11me decifra, me decifra, senão eu vou te devorar.
05:14A identidade nacional brasileira, digamos, é tão frágil que ela tem que viver de fragmentos.
05:18Quer dizer, pelo menos eu encaro essas características como fragmentos, né?
05:23Se você compara, por exemplo, com os mexicanos, né?
05:27Porque existe uma...
05:29Em todo o país onde a identidade tem uma força,
05:32existe uma angústia relacionada a isso.
05:34O Brasil não tem nenhuma angústia em relação à sua identidade nacional,
05:37porque ela se resolve nesses pequenos fragmentos,
05:40nesses detalhes, alegria, carnaval, futebol,
05:42está resolvido, né?
05:44É um conjunto de sintomas ou de sinais.
05:46Eu acho que pode pensar o Brasil como uma extensão de território
05:51que abriga as pessoas, que pode receber bem as pessoas
05:54e que tem fronteiras nacionais, que é uma nação,
06:00mas a questão da identidade é que não vigora,
06:04porque essa identidade é múltipla.
06:06Como é que eu vou cobrar de um Nisei ter a mesma identidade de um sertanejo?
06:10Agora, ele é menos brasileiro, o Nisei, porque é filho de japonês,
06:13é menos brasileiro do que o sertanejo, que nasce lá em Pombal, por exemplo?
06:17Mas um dos desafios dessa mixigenação, desses sincretismos
06:22e desse caminho histórico
06:23é que talvez ele tenha sido um processo violento para todos nós
06:29e que essa violência deixa traumas e deixa vazios que ainda nos perturbam.
06:33Talvez por isso o brasileiro não se sinta tão bem no seu corpo,
06:39na sua casa, no seu país, no seu espaço
06:41e a gente insista em procurar referências externas.
06:45Nada do que chegou aqui permaneceu puro, nem inteiro.
06:51Tudo se misturou.
06:52Eu acho que a hibridez, a mestiçagem, a mistura, as ondas de fronteira,
06:58essas flutuações, o nomadismo nisso é muito mais interessante do que o apartheid.
07:04Os americanos não gostam muito da ideia de mestiçagem.
07:08Lá eles definem muito mais, como diz o Caetano Veloso,
07:12o negro é negro, o branco é branco e a mulata não é a tal.
07:18Então, lá o multiculturalismo se aferrou, ele nasce nos Estados Unidos,
07:22porque para o pensamento americano é muito importante definir as fronteiras.
07:26Mas elas se chocam com a nossa formação brasileira,
07:30que está ligada à mestiçagem, e a mestiçagem não encontra lugar
07:33nessas defesas mais fundamentalistas das identidades.
07:36Você tem, de fato, uma série de processos de miscigenação na história brasileira,
07:43mas quando ela vira a identidade nacional,
07:47aí você tem um Estado nacional brasileiro pegando essa característica,
07:53que está fundamentada numa violência primeira,
07:56e tirando esse caráter violento e trazendo essa harmonia pacifista
08:03e, na verdade, mítica.
08:06Como é que a gente lê a miscigenação?
08:07A miscigenação, que foi, durante o racismo científico,
08:11identificada como o grande mal e a grande impossibilidade de progresso
08:15e de evolução, de evolucionismo para o Brasil,
08:17passou a ser recodificada a partir dos anos 30,
08:24como sendo o elemento de unidade nacional,
08:29sem mexer nas hierarquias.
08:31Não houve efetivamente mistura.
08:34Houve a junção de elementos,
08:36mas uma junção hierarquizada de elementos
08:39de cada uma dessas raças, de cada uma dessas culturas,
08:43de cada uma dessas cosmovisões.
08:44O mito da cordialidade brasileira,
08:49o mito das três raças que convivem harmonicamente,
08:53um mito que é muito fundado na elaboração de sentido
08:57que é dada à guerra de expulsão dos holandeses,
09:00quando você tem lá o negro Henrique Dias,
09:05o índio Felipe Poti Camarão
09:06e o branco André Vidal de Negreiro
09:08se abraçando para expulsar o invasor,
09:11é a ideia desse encontro harmônico
09:14entre as três raças.
09:16Isso está muito presente.
09:18Quando há rigor,
09:19esse encontro de harmônico não tem coisa nenhuma.
09:22É um encontro que se fundamenta
09:24na base da violência, do cacete, da espoliação,
09:27mas que, paradoxalmente,
09:29é capaz de produzir uma cultura potente,
09:32belíssima e tremendamente original.
09:34Havia aqui centenas de civilizações.
09:41Vamos chamar civilizações
09:43porque eram organizações sustentáveis
09:46que tinham sua língua própria,
09:48governança própria,
09:50sua economia própria,
09:53suas crenças próprias.
09:56Percebe que o Brasil ancestral
09:58já havia como uma das práticas
10:04é conhecer o diferente
10:07e se relacionar com o diferente,
10:11com a alteridade.
10:13Para os antigos
10:15Tupiniquim,
10:19quando você possibilitava
10:22que um outro povo
10:25tivesse uma pessoa do seu mesmo sangue,
10:28isso era um sinal de fortalecimento do povo.
10:31A miscigenação para Tupiniquim
10:35não era um sinal de enfraquecimento do povo,
10:37era um sinal de fortalecimento do povo.
10:40Podemos pensar que as culturas latino-americanas
10:42são derivadas desse hibridismo.
10:45Temos muitos exemplos
10:46do que significa um pouco
10:48a vida bicultural,
10:51a dupla herança,
10:52ser de dois lugares,
10:54pertenecer a duas tradições.
10:56identidade significa
10:58o incorporado com uma diferença.
11:02Não se trata de uma coisa
11:04anterior, autêntica,
11:06existente,
11:08nós desconfiamos de todo o essencialismo
11:10e a antropofagia seria uma boa
11:13expressão disso,
11:16incorporar tudo
11:17de forma não essencial.
11:18Se nós pensarmos
11:20no Manifesto Antropófago,
11:21o Manifesto Antropófago
11:22possui no seu texto,
11:24nos seus aforismos,
11:26uma tensão muito interessante
11:27entre o que nós poderíamos dizer
11:29uma vocação antropológica
11:30e uma determinação histórica.
11:33Na famosa frase do Manifesto,
11:34diz o Oswald,
11:35só me interessa o que não é meu,
11:37lei do homem,
11:39lei do antropófago.
11:40Se eu só me interesso
11:41pelo que não é meu,
11:42eu não posso constituir
11:43uma identidade estável.
11:44Há uma diferença extrema
11:46entre ser macaco de imitação
11:49e ser vira-lata.
11:52A gente pode fuçar
11:55todas as latas de lixo,
11:56aproveitar tudo
11:57que a gente quer lá de dentro
11:59e transformar em outra coisa.
12:02Isso não é macaquice.
12:04A macaquice é quando você pega
12:06exatamente o que o outro fez
12:07e quer ser aquilo.
12:10Aquilo não é seu.
12:11O que eu acho fantástico
12:12nesse país é que a gente pode
12:14ter inúmeras identidades.
12:18E a identidade sempre é definida
12:19em oposição ao outro.
12:22Isso é bem abado à filosofia.
12:25Eu acho que a gente tem que
12:26se livrar disso.
12:27O Brasil é uma boa terra
12:29para não termos mais
12:31esse complexo identitário, quase.
12:35Eu defendo quase o ateu
12:36e a cuia do Brasil, entende?
12:38Não precisa dizer necessariamente
12:41de maneira claríssima
12:43e um pouco rígida
12:46o que é a brasilidade.
12:49No Brasil,
12:50de maneira muito forte,
12:51sempre essa questão
12:52de se definir como uma nação
12:53é como se essa definição
12:54nunca chegasse.
12:58E talvez estejamos num momento
12:59que já se definir como uma nação
13:01não é mais um problema para ninguém.
13:03porque talvez o próprio conceito
13:05de nação esteja fadado
13:08a desaparecer,
13:09a se tornar estrito demais,
13:11rígido demais
13:12pela circulação das informações.
13:14O que você tem é que
13:15surfar no caos.
13:17Você tem que olhar o mundo
13:19como um quadro de boche.
13:21E dentro disso,
13:22o Brasil é um ponto
13:26terrivelmente privilegiado.
13:29é sublime
13:31no sentido
13:32daquele clássico
13:33de sublime.
13:34Aquela
13:35é o terrível
13:37que
13:37faz com que você tenha
13:39um enlevo,
13:42você tenha medo
13:43e tenha entusiasmo
13:45ao mesmo tempo.
13:46Pelo menos,
13:47para mim,
13:50encaro
13:51dessa forma
13:53essa localidade
13:54de ficção científica
13:56trash,
13:57chamada
13:59Brasil.
14:02A interpretação
14:03do passado,
14:04como é que nós
14:05acontecemos,
14:07como é que nós
14:07fomos formados,
14:08na verdade,
14:09são recuos
14:09que nós fazemos
14:10para movimentos
14:12retrospectivos
14:13em grande medida
14:14ficcionais
14:14e muito marcados
14:16pelo que nós desejamos.
14:19As crenças
14:20têm um papel
14:20fundamental nisso.
14:22Então,
14:22a discussão
14:23sobre o nosso passado
14:24idênico ou não,
14:26ela foi sujeita
14:27também a várias
14:27interpretações.
14:30Primeiro,
14:30a grande interpretação
14:33que se faz
14:33é a interpretação
14:34que os europeus,
14:34na altura,
14:35no século XVI,
14:36vão fazer eles mesmos
14:37a respeito
14:38do que é isto
14:40que está sendo descoberto,
14:41que está sendo incorporado
14:42ao processo
14:43de expansão europeia.
14:44por que o Brasil?
14:46Porque o Brasil
14:47tem essa costa
14:48maravilhosa
14:48desse tamanho,
14:50porque o Brasil
14:50tem essas águas,
14:51porque o Brasil
14:51tem a floresta amazônica,
14:53porque o Brasil
14:53tem dados naturais
14:54tão...
14:55tão...
14:56contrários,
14:59tão radicalmente
15:00contrários
15:00ao que era uma Europa,
15:02entrando já
15:03numa era
15:03que desembocaria
15:04na industrialização,
15:05entrando já
15:06numa era
15:06de uma série
15:07de controles
15:08e reivindicações
15:09ligadas a um Estado moderno,
15:10que é claro
15:11que a descoberta
15:12de um território
15:13como o brasileiro
15:14ou como o que viria
15:15a ser o Brasil
15:16naquele momento,
15:17como a população
15:18que naquela época
15:20foi vista
15:21não como inimiga,
15:22mas como infantil,
15:24onde a sua relação
15:25física
15:26e subjetiva
15:27com a natureza
15:28era dada
15:29sem filtros,
15:30digamos assim,
15:31do corpo nu,
15:33de uma integração
15:34com o território
15:35natural
15:36em que
15:37para a mentalidade
15:39daquele período
15:40era praticamente
15:41incompreensível,
15:42é a fundação,
15:44e aí sim,
15:44eu acho que isso tem
15:45muito a ver
15:45com o que a gente
15:46está conversando,
15:47a automática
15:47de um mito edênico,
15:49o Brasil sempre
15:51ou ao longo
15:51de muito tempo
15:52visto,
15:53isso tem a ver
15:53com a questão
15:54de promessa
15:55de futuro,
15:56isso tem a ver
15:56com a questão
15:56da alegria,
15:57isso tem a ver
15:57com a questão
15:58do corpo no Brasil,
16:00que é essa ideia
16:01de um grande Éden
16:02aberto,
16:03aberto,
16:04ao contrário
16:05do Éden privado
16:06que é o Éden,
16:06por exemplo,
16:07do Mayflower.
16:08para o americano
16:10do norte,
16:11ele tinha a impressão
16:13de que chegava
16:14a um lugar
16:14onde podia se afirmar,
16:16mas contra a natureza,
16:18que era fundamentalmente
16:19hostil,
16:20o que os peregrinos
16:24chamam de wilderness,
16:25é um lugar
16:26onde tem bichos,
16:28onde faz um frio
16:29do gacete.
16:30Aqui é totalmente
16:31diferente,
16:32aqui nós chegamos,
16:34e essas primeiras ideias,
16:35que isso não
16:37era o paraíso
16:38terrestre,
16:39mas tinha
16:40fortes chances
16:40de ser
16:41aquele continente
16:43onde ele
16:44originalmente
16:45estava situado.
16:46Então,
16:47por isso
16:47que os papagaios
16:48falam,
16:49porque fugiram
16:51do paraíso
16:51terrestre
16:52onde todos
16:53os bichos
16:53falavam,
16:54o que significa
16:56que no meio
16:57do Brasil
16:57em nenhum lugar
16:58deve ter
16:59o paraíso
17:00terrestre.
17:01A importância
17:02do paraíso
17:03nessas crônicas
17:04é inicialmente
17:05uma forma
17:05de associação.
17:07O paraíso
17:08aparece associado
17:09desde o tema
17:10bíblico
17:11a riquezas,
17:12a abundância,
17:14a lugar
17:15onde a pessoa
17:16realmente
17:17tem facilidades.
17:19E essa associação
17:20que é importante
17:20no momento
17:21de mencionar
17:22o paraíso.
17:23Vamos pensar
17:24no contexto
17:25do século XVI,
17:26inicialmente,
17:28a natureza
17:28está à disposição,
17:29mas não só
17:31a natureza,
17:33os animais,
17:35os seres humanos
17:36estão à disposição
17:38do dominador.
17:41Então,
17:42temos que aproveitar
17:43o máximo
17:43que for possível
17:44dessas forças.
17:48O lugar da natureza,
17:49por exemplo,
17:50no imaginário brasileiro,
17:50sempre foi esse lugar
17:51de transbordamento.
17:52E, nesse sentido,
17:54esse contraste,
17:56tradicionalmente,
17:57no Brasil,
17:57sempre foi o contraste
17:58entre a história
17:59e a geografia.
18:00Quer dizer,
18:01a geografia
18:01era sempre excessiva
18:03e a história
18:03era sempre carente.
18:05A natureza aqui,
18:07no Brasil,
18:08ela integrou
18:09as estratégias
18:10de Estado
18:11brasileiro
18:13para legitimar,
18:15digamos,
18:15a soberania
18:16sobre certos espaços.
18:17Portanto,
18:18ela aqui entrou
18:19com uma estratégia
18:20identitária
18:21do Estado.
18:23E esse,
18:23eu diria,
18:24que é um ponto à parte.
18:26É uma singularidade.
18:27quer dizer,
18:28é oficialmente,
18:29o discurso oficial,
18:30fazer da natureza,
18:32via Amazônia,
18:34um,
18:34digamos,
18:35um elemento,
18:35um recurso
18:36identitário
18:37para o Estado
18:39brasileiro.
18:40Portanto,
18:40mais para o Estado
18:42do que para a nação.
18:44Então,
18:44a ideia
18:44de que a natureza
18:45define o Brasil
18:46tanto pelo lado
18:47positivo,
18:48de um lado,
18:50quanto por um lado
18:51negativo,
18:53é uma ideia
18:53que acompanha o Brasil
18:54desde sempre.
18:54Nós pensamos
18:55na natureza
18:56apenas como pujança,
18:58como exuberância,
18:59como potência
19:00de futuro,
19:01mas nem sempre
19:02foi assim.
19:03Já se viu
19:03a natureza brasileira
19:05como um impedimento
19:06à civilização,
19:08porque,
19:08precisamente,
19:09pela sua exuberância,
19:11ela não permitiria
19:12a indústria,
19:13ela não permitiria
19:13o trabalho continuado,
19:15a disciplina necessária.
19:17Então,
19:17a natureza no Brasil
19:18tem dupla visão.
19:20Ela tanto pode ser
19:21a promessa
19:21de um futuro
19:22que nunca chegou,
19:23quanto pode ser
19:24o impedimento
19:26para que este futuro
19:27chegue,
19:27porque tão abundante
19:28a terra,
19:29porque a disciplina
19:30do trabalho.
19:31E, por fim,
19:32a natureza na cultura
19:33brasileira
19:33tem outra finalidade.
19:35A finalidade é,
19:36mais uma vez,
19:36nos afastar da história,
19:38porque se nos apegamos
19:39à beleza da paisagem,
19:41se falamos da praia
19:42como um espaço democrático,
19:44esquecemos
19:45que,
19:46tão logo
19:46os corpos
19:47saiam da praia,
19:49tão logo
19:50pisem no calçadão,
19:52todas as hierarquias sociais
19:53são reestabelecidas.
19:54quais são
19:54as implicações
19:56que essa estrutura
19:57desigual gera,
19:58quais são os lugares
19:59que ela produz.
20:01E a gente não,
20:02a gente se prende ao,
20:03a gente não quer ver
20:04o que o encontro
20:05produz,
20:06a gente quer falar
20:06só do encontro.
20:08O que faz do Brasil,
20:09o Brasil?
20:09Todos queriam
20:10a continuidade da escravidão.
20:12Então,
20:13o que cimenta o Brasil
20:14é que,
20:15porque não é o Brasil,
20:16os ingleses só usam
20:17the Brazils,
20:18no plural,
20:18do século XVIII
20:20ao século XIX,
20:21na correspondência diplomática,
20:23todas essas negociações
20:24da transmigração
20:25da família,
20:26as fontes inglesas,
20:27se você ler
20:28as fontes inglesas,
20:29está sempre no plural,
20:30os Brasils.
20:31Então,
20:32a concepção é de que
20:33são várias partes.
20:34O que dá unidade
20:35para o Brasil
20:36é a escravidão.
20:38Escravidão é geral.
20:40Todas as elites
20:41querem a escravidão,
20:42seja na Amazônia,
20:43seja em Pernambuco,
20:45seja...
20:46As vozes que se levantam
20:47contra a escravidão
20:48são individuais.
20:50Ora,
20:50o que acontece
20:51no Brasil
20:52é que o império português
20:56deu ao Brasil
20:58o Estado,
20:59a ideia de Estado
20:59é de nação também,
21:01mas não deu de povo.
21:04Quer dizer,
21:04o império acaba
21:06sem que se tenha
21:08a ideia,
21:10a noção
21:10de um povo estruturado.
21:12Quer dizer,
21:12o ser brasileiro
21:14é um enigma
21:15de natureza cultural.
21:17É um enigma
21:18basicamente
21:20de fundo cultural.
21:22E parece que,
21:23como o campo
21:24das instituições,
21:26como o campo
21:26da política institucional,
21:28como o campo
21:29das formalidades
21:30ele é um campo minado
21:33e ele é um campo
21:34de exercício
21:35de um projeto
21:36de exclusão social,
21:38há um deslocamento
21:40para outros campos
21:41que se estabelecem
21:42no lúdico,
21:43na festa,
21:45na fresta,
21:45onde você inventa
21:47formas de ter
21:48um exercício
21:49muito peculiar
21:49de cidadania.
21:51Cultura popular brasileira
21:52foi o lugar
21:52onde a experiência
21:54brasileira
21:55conseguiu realizar
21:57tudo aquilo
21:58que a experiência
21:59socioeconômica,
22:00política brasileira
22:01não realizou.
22:04Tudo aquilo
22:04que há
22:04de conservador,
22:06de dominação,
22:07de expoliação,
22:08de uma classe
22:09sobre outras,
22:10no nível
22:11socioeconômico-político,
22:13no nível da cultura popular,
22:14se revelou invertido.
22:15a revelia
22:17desses projetos
22:19oficiais,
22:20institucionais,
22:20conservadores e exploradores.
22:22A ideia de identidade,
22:23no meu ponto de vista,
22:24ela tem a ver
22:24com a adesão,
22:26com a identificação,
22:27com alegorias,
22:28com mitos,
22:29com crenças,
22:29com expectativas,
22:30é algo que nós
22:31acrescentamos
22:32à nossa experiência
22:33de vida.
22:34E a nossa sempre passou
22:35por um lado mais imaginário,
22:38mais projetivo,
22:39quer dizer,
22:39a dimensão lúdica,
22:40a dimensão um tanto
22:41cotidonista,
22:42quer dizer,
22:43a gente tem a memória
22:44musical brasileira,
22:45muito mais forte
22:46que a memória política.
22:48Está certo?
22:48Você pergunta,
22:49quem é que vocês votaram
22:50nas suas eleições,
22:51as outras pessoas?
22:51Não sabem,
22:52mas a gente sabe
22:53os sambas todos,
22:54as marchas de carnaval,
22:55os enredos
22:56de escola de samba.
22:58Tanto existe
22:59essa dimensão
23:01identitária
23:01que está...
23:02Essas várias
23:03dimensões identitárias
23:04que eu acho
23:05que são plurais,
23:05são variadas,
23:06e que tem a ver
23:07com essa recolha
23:08sistemática
23:09de fragmentos
23:12que estão colocados
23:13no plano da cultura,
23:14no plano da vida,
23:16e não no plano
23:17da política.
23:18É o único país
23:20que depois da independência,
23:22a única nação
23:23americana
23:25que depois da independência
23:27constituiu
23:29uma massa crítica
23:31de intérpretes
23:32do Brasil
23:32extraordinária.
23:34então existe
23:37uma reflexão
23:39constante
23:40sobre o Brasil
23:41que é feita
23:42pelos nossos
23:44melhores
23:44intelectuais.
23:46Você encontra
23:46grandes obras
23:47do modernismo,
23:48talvez as mais
23:49importantes,
23:51elas trazem
23:52preocupação
23:53com a identidade
23:53nacional
23:54e ao mesmo tempo
23:55questionam.
23:56Macunaíma
23:56é um livro
23:58que se pergunta
23:59sobre o que é
24:00o brasileiro
24:01e ao mesmo tempo
24:02é um livro
24:02que não consegue
24:03chegar a nenhuma
24:04formulação.
24:06Estou lendo
24:06o Antônio Calado
24:08em Quarupi
24:08que formula
24:10ainda,
24:11olha só,
24:11nos anos 60,
24:12no final dos anos 60,
24:14o problema
24:14da identidade
24:15nacional
24:16e acaba encontrando
24:17a identidade
24:18nacional
24:19num formigueiro,
24:20o centro do Brasil,
24:21num formigueiro
24:22de que você não pode
24:23se aproximar.
24:24O que moveu
24:26essas figuras
24:27a porro
24:28o problema
24:29da identidade
24:30foi uma espécie
24:30de sentimento
24:31da falta
24:32de identidade.
24:34Então,
24:35todos eles,
24:37ao longo
24:37dos anos 20
24:38e depois,
24:39começaram a pesquisar
24:40quais são os elementos
24:42que devem,
24:43afinal,
24:43compor
24:44um retrato
24:45do brasileiro.
24:46E eles tiveram
24:48caminhos muito
24:49diferentes.
24:50O Mário de Andrade
24:52teve um caminho,
24:53o Oswald de Andrade
24:54teve outro,
24:55o Gilberto Freire
24:56teve outro,
24:57o Sérgio Buarque
24:58outro,
24:58o Glauber Rocha
25:00outro,
25:01o Joaquim Pedro
25:02outro,
25:02o Helio Itzica
25:03outro.
25:04A gente,
25:04por vezes,
25:05tem a sensação
25:05de que nós somos
25:06ricos,
25:06inteligentes,
25:07criativos pra caramba
25:08na dimensão
25:10aqui de baixo,
25:11das nossas interações
25:12espontâneas.
25:14Na geleia geral.
25:15A geleia geral
25:15é produtiva,
25:16ela é...
25:18Mas,
25:18quando a gente
25:19vai pra política,
25:21é impressionante
25:21como a imaginação
25:22fenece,
25:23o vocabulário
25:24diminui.
25:25Evidentemente
25:26que isso não é
25:26uma característica
25:28inata nossa,
25:29quer dizer,
25:30essa despolitização,
25:31essa rarefação
25:33do vocabulário,
25:35do conhecimento
25:36político,
25:37do discurso político,
25:39ela tem a ver também
25:39com o modo pelo qual
25:40a política se apresenta
25:41pro país.
25:43Não são os nossos
25:44defeitos
25:44enquanto sociedade,
25:46certo,
25:46que explicam a política
25:47que nós temos.
25:48Eu acho que é o contrário.
25:49A política que nós temos,
25:51historicamente,
25:52que tem configurado
25:53um povo,
25:54no qual a política,
25:57a política
25:57não tem centralidade,
25:59não tem relevância.
26:01A vida aqui embaixo
26:02tem mais relevância,
26:03nós temos que nos virar
26:03aqui embaixo.
26:04Quando é que a gente
26:05vai parar pra refletir
26:06a respeito
26:07da nossa história,
26:08de repente nos libertar
26:09desses construtos,
26:11dessas alegorias,
26:12né,
26:13que estão feitas ali
26:14para manter
26:15essas estruturas em pé
26:16e abrirmos um pouco
26:17essa paisagem
26:18pra criar a possibilidade
26:20de criar novas estruturas?
26:21É na política
26:23que se experimenta
26:25essa novidade,
26:28né,
26:28é a vida política
26:30que traz
26:31a possibilidade
26:32de que,
26:34em conjunto
26:35e publicamente,
26:39a gente possa
26:40inventar alguma coisa.
26:42Isso não tem história
26:44que nos predetermine.
26:46Então,
26:47se a gente está vivendo
26:48uma crise da história,
26:50essa crise da história
26:51pode ser favorável
26:53ao aparecimento
26:54da novidade política.
26:56da novidade política.
27:26Tchau, tchau
27:56Tchau
28:26Tchau
28:56Tchau
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