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  • 22/05/2025
Um documentário que recorda os 48 anos de ditadura em Portugal com testemunhos de presos políticos, imagens da época e fotografias de arquivo inéditas.
Transcrição
00:00Apois a assinatura do Armistício de Compiegne entre os Aliados e a Alemanha, a 11 de novembro
00:27de 1918, as tropas vencedoras desfilaram nos campos ilísios junto ao Arco do Triunfo.
00:34Para trás ficava uma Europa dilacerada por uma guerra nunca vista na história da humanidade
00:39que ceifou toda uma geração na flor da vida.
00:41A Primeira Guerra trouxe também um ensaio de um novo modelo de organização do Estado.
00:51Em outubro de 1917, os exércitos populares de Lênin e Trotsky derrotam o Czar e o Governo
00:57de Kerensky em todas as cidades da Rússia.
01:02Aos gritos de pão, paz, terra, abaixo a guerra, a Revolução triunfa.
01:06A chegada do povo ao poder, essa experiência única que foi a queda do Czarismo e a implantação
01:14do Bolchevismo é uma experiência única, até aí apenas teorizada e nunca concretizada.
01:20É o único país onde isso acontece, mas com sucesso.
01:24Lênin irá então fundar o Estado Comunista, o Partido Único e a União das Repúblicas
01:28Soviéticas.
01:30Recebida com esperança por uns e com terror por outros, a Revolução Russa irá marcar
01:35o destino da Europa e do mundo daí por diante.
01:39Nós sabemos que um dos fatores que condicionava a participação norte-americana na guerra
01:43seria o facto de, nos aliados podemos chamar, existir um país que não era democrático.
01:49Nós sabemos que Wilson era o grande heraldo da democracia.
01:52E, portanto, a queda da Rússia czarista foi fundamental para a determinação norte-americana
01:59de se empenhar nos esforços de guerra e, como sabemos, foi decisivo para o sucesso
02:04final e a derrota dos impérios centrais.
02:06A Conferência de Versailles tenta obter uma paz duradoura numa Europa amplamente destruída.
02:12A grande nação alemã, principal derrotada no conflito, é arredada da Conferência.
02:18O documento assinado pelos vencedores obrigou a Alemanha a pagar pesadas indenizações
02:24pela sua culpabilidade na Grande Guerra.
02:27Viu também as suas fronteiras diminuírem substancialmente e perdeu os territórios
02:31coloniais.
02:32A guerra e a convulsão social provocadas pelo anarco-sindicalismo serão fatais para
02:40os modelos políticos do século XIX, as monarquias e as repúblicas constitucionais.
02:47Entretanto, o Sidónio Paes inicia uma grande alteração no regime republicano português.
02:53Para alguns investigadores, ele é o precursor dos regimes ditatoriais que, na época de
02:57vinte, proliferaram pela Europa.
02:59O sidonismo é um regime, enfim, para já temporário, muito curto, que se desenvolve
03:06durante um ano, mas em que a experiência é fortíssima, ou seja, está ali em causa
03:11quase tudo o que vai acontecer no futuro.
03:14Na verdade, há uma tentativa para reformar a república, sem dúvida que há, uma república
03:19que não será já parlamentar, mas será presidencialista, e desse ponto de vista as
03:23leis constitucionais que vão fundar o novo regime são leis que trazem muitas novidades
03:30ao nível da organização e da engenharia política propriamente do regime.
03:34Um dos obstáculos à liderança de Sidónio era o Parlamento.
03:37Encerrado este, no rescaldo do golpe de 8 de dezembro de 1917, tardou a abrir.
03:44Outro dos obstáculos era a falta de harmonia entre os partidos.
03:48Sidónio pretendeu formar um partido único e obter assim esse equilíbrio.
03:52Não quer dizer que Sidónio não seja um republicano, porque de facto é, embora seja
03:58um republicano que encara a república como um regime que deve ser mais autoritário,
04:02deve conseguir de facto resolver as questões da ordem, da segurança, e isso só de uma
04:08forma mais autoritária, com um presidente da república de facto eficaz, e com um governo
04:13que responda perante o presidente da república e não perante o Parlamento.
04:16Portanto, são de facto mudanças cujos, aliás, apoiantes são exatamente aqueles que vão,
04:22na maior parte dos casos, fazer o 28 de maio de 1926.
04:25E deste ponto de vista é de facto um prenúncio do que vai acontecer mais tarde.
04:29No final de 1919, a inflação, que tinha crescido muito durante a guerra, atinge uma taxa record
04:35de 79%.
04:37A constante subida de preços aumentou a clivagem social.
04:42A inflação favorecia sobretudo os industriais de textas, madeira e conservas que tinham
04:47enriquecido com a guerra.
04:49Mas a escassez de alimentos foi também aproveitada pelos comerciantes que congelavam os produtos
04:53nos armazéns para os levarem a subir de preço e depois vendê-los a preços altíssimos
04:58no mercado negro.
04:59A inflação era tanta que, à falta de prata para as moedas, se recorriam a outros truques
05:05para se fazer dinheiro.
05:07O escudo e a forte procura da libra também favorecem a expansão da banca.
05:11Com o fim da guerra, nasceram 12 novos bancos.
05:16Até 1920, criaram-se também mais de 2.000 casas comerciais.
05:21A baixa Lisboeta tornou-se num luxuoso centro comercial.
05:25Multiplicavam-se os novos ricos e as mais absurdas manifestações de dinheiro fresco.
05:30Mas a inflação, que enriquecia uns, empobrecia outros.
05:35Os salários dos operários, apesar de também terem subido, não acompanharam o ritmo da
05:40inflação.
05:41Enfurecidos pela carestia de vida, da fome e pelo espetáculo de esbanjamento oferecido
05:46pelos novos ricos, e motivados ainda pelas notícias triunfantes da Revolução Russa,
05:51os operários vão iniciar uma vaga de greves que colocou o país em estado de sítio social
05:56durante dois anos e foi derrubando governos atrás de governos.
06:01Aproxima-se o tempo dos fascismos.
06:04Sem dúvida que o fascismo, de uma forma genérica, podemos dizer que surge num período de agudização,
06:13profunda agudização, dos problemas económicos e sociais num período de pós-guerra.
06:17Sem dúvida que isso é a principal matriz de todos os regimes autoritários, dos conservadores
06:22aos mais totalitários, é o pano de fundo sobre o qual se desenvolvem estes regimes.
06:28São regimes em que, face à crise aguda em que se vive na Europa, profundíssima,
06:34de desemprego, de dificuldades económicas várias, de necessidade de colocar de novo
06:39as pessoas que estiveram na guerra no sistema económico, de reformulação da própria
06:44economia, etc., são regimes em que, de facto, as pessoas, os homens, os dirigentes abdicaram
06:51da liberdade em nome da segurança, em nome da ordem e isso faz com que, obviamente, aquilo
07:01que arquitetam como regimes políticos, como farmas de governo, sejam farmas de governo
07:07muito autoritárias.
07:08A primeira experiência de regime fascista ocorre na Itália.
07:13O país, como muitos outros países que sofreram os efeitos da Grande Guerra, foi tomado por
07:18políticas pouco estáveis que fizeram emergir o desemprego, a fome, os tempos difíceis.
07:23Benito Mussolini fundou em 1919 os Fasci Italiano di Combattimento, organização que originaria
07:30mais tarde o Partido Nacional Fascista Italiano.
07:33Tratava-se de um movimento oposicionista que vai conseguindo a adesão dos militares descontentes
07:39e de grande parte da população carenciada.
07:41O apoio recebido dos grandes industriais, o reconhecimento do catolicismo como a única
07:46religião permitida, o recurso à força organizada, nomeadamente através da OVRA, a Polícia
07:52Política Italiana, que provoca vários assassinatos, entre os quais o do dirigente socialista Matteotti,
07:59faz surgir o medo entre a população e encerra o período da democracia parlamentar.
08:03Na Alemanha, Hitler beneficia com o caos provocado pela Primeira Guerra.
08:16A Jovem República de Weimar não resiste à crise política e social.
08:20Explorando a frustração na sociedade alemã de ter perdido a guerra e o sentimento antissemita
08:24generalizado, o Partido Nazi foi se implantando entre a classe média e os operários.
08:30Sem soluções, os partidos do governo não resistem à crise política e social.
08:35A pouco e pouco, em eleições sucessivas, o Partido Nazi vai ganhando deputados até
08:40formar governo e levar Hitler à esfia da nação alemã.
08:43No Japão, Hirohito, imperador desde 1926, era considerado um deus vivo pelo povo.
08:57O governo do general e primeiro-ministro Hideki Tojo era dominado por militares.
09:03Também aqui as pessoas foram levadas a prescindir das suas liberdades e seguiram políticas
09:08que mais tardes levariam a situações desconhecidas.
09:10O assassinato de Sidónio Paes mergulha novamente Portugal numa profunda crise política, com
09:21várias tentativas sem sucesso de reformar a Jovem República.
09:28Tentou-se tudo ali.
09:30Durante esses oito anos tentou-se tudo.
09:31A reforma dos partidos políticos, houve refundações de partidos políticos, de ideologias, pessoas
09:36que passaram de um partido para outro, justamente porque era uma forma de conseguir encontrar
09:41algumas soluções.
09:43Reformar o Parlamento, tentar exatamente reformas da forma ou do funcionamento do Parlamento,
09:48há reformas em 19, em 23, em 25, há de facto muitas tentativas para que o sistema político
09:56não condene o regime.
09:57E, na verdade, a crise era provavelmente demasiado forte e de resto tinham desaparecido praticamente
10:05todos os grandes líderes da República durante a guerra.
10:07A guerra tinha queimado os grandes líderes republicanos, Afonso Costa, Bernardo Machado,
10:12etc.
10:13Embora se tenham ficado um pouco ainda até 26, mas alguns líderes, António José de
10:18Almeida, etc.
10:19Muitos líderes, de facto, ficaram um pouco queimados com esta guerra, que não correu
10:23bem.
10:24Não correu bem em ninguém, como não correu bem em Portugal.
10:25A 28 de maio de 1926, um levantamento militar encabeçado por Gomes da Costa, um dos generais
10:32do Corpo Expedicionário Português, faz uma marcha triunfante sobre Lisboa.
10:36A população portuguesa, cansada de tumultos, greves e instabilidade, vê no Golpe de Estado
10:43a possibilidade de um restabelecimento da ordem, da paz e do controle orçamental.
10:49Digamos que é esta conjuntura de necessidade, de desencanto por um lado, e de necessidade
10:55de regenerar a República que faz com que muitos grupos se juntem à volta deste projeto,
11:00alguns com a perspetiva de fazer uma espécie de interregno ditatorial regenerador, e são
11:07muitos, desde os cheireiros até mesmo à esquerda republicana, inclusive no mundo operário
11:12há de facto pessoas que pensam assim, depois há outros, obviamente, que têm interesses
11:17claramente de reforço da autoridade, de militares e de igreja, os interesses económicos também
11:24estão, obviamente, aqui metidos, têm interesse fundamentalmente em garantir que, por exemplo,
11:29os tumultos, os mutins, as greves não sejam desreguladoras ao ponto de não ser possível
11:34retomar a economia no período de pós-guerra e, portanto, é esta situação de declínio
11:41da República do ponto de vista político, de razões de grande confrontação social
11:46e simultaneamente de incapacidade política para encontrar soluções que resolvam estes
11:52agudos problemas que fazem com que, obviamente, acabe por vingar à autoridade, à segurança,
11:58à ordem e, obviamente, a liberdade fique comprometida.
12:01Gomes da Costa nomeia para a pasta das finanças um jovem professor de Coimbra, nascido em
12:061889. Salazar tem 37 anos quando chega ao governo pela primeira vez. Ministro por apenas
12:1313 dias, abandona a governação por não ver satisfeitas as condições que achava
12:18indispensáveis para governar. Formado em direito, tinha assumido desde 1917 a regência
12:24da Cadeira de Economia Política e Finanças na Universidade de Coimbra. Antigo seminarista,
12:31António de Oliveira Salazar vive com a repulsa, o atentado ao rei Dom Carlos e os ataques
12:36permanentes dos republicanos à Igreja Católica. Esta devoção religiosa irá marcar toda
12:42a sua governação e acompanhá-lo-á ao longo de toda a sua vida.
12:46Ele estava no Forte do Estoril e pediu-me para ir falar com ele um domingo. Nesse tempo
12:58tinha uma casa no Estoril, passava lá o fim de semana com a minha mãe e o meu pai. Como
13:05aquilo é perto daquele restaurante, que é a Chopana, eu resolvi tomar um pequeno almoço
13:14lá e depois fui a pé até ao Forte. Quando se chegava de automóvel era preciso tocar
13:20um sino, vinha uma empregada, abria os portões, enfim, havia um barulho anunciador de que
13:26as pessoas chegavam. Como eu cheguei a pé, não foi preciso esse cerimonial, e portanto
13:31entrei pela pequena porta de serviço e quando cheguei ao pátio do Forte, ao fundo há uma
13:40capela que eu nunca tinha visto aberta e ele estava de costas a arranjar o altar para
13:49a missa. E eu pensei que isto é uma intimidade que eu não posso ver. E voltei para trás
13:56e pedi para tocarem o tal sino. Depois regressei com o meu vagar e ele já estava sentado
14:01naquela cadeira, de onde havia de cair, a ler os jornais. Era uma fé sólida, antiga,
14:14bebida das raízes, à beira.
14:20Ao fim dos primeiros dias de manifestações de apoio ao golpe do 28 de maio, a ditadura
14:25militar suprime as liberdades fundamentais, limitando a atividade parlamentar e sindical,
14:30entre outras.
14:35O parlamento fechou dois dias depois do 28 de maio, os partidos políticos foram dissolvidos,
14:40a maior parte dos sindicatos desapareceram ou foram também dissolvidos e a justiça,
14:46por exemplo, para começarmos por falar da justiça, a justiça começou por ser uma justiça
14:50governamentalizada, as pessoas eram levadas para as colónias à ordem do governo, viessem
14:56quando viessem, quando o governo decidisse e a partir de 30 começou a haver aquilo que
15:01se chama Tribunais Militares Especiais.
15:04Situado no campo de Santa Clara, o Tribunal Militar Especial vai julgar mais de 15 mil
15:09presos políticos que na sua maioria é deportada para as colónias. Esta espécie de saneamento
15:14coletivo de quem não concordava com a ditadura é similar com a aplicação da justiça nas
15:19outras ditaduras europeias e vai depurando sucessivamente todas as famílias políticas
15:24republicanas.
15:25E a partir daí, de facto, caminha-se definitivamente para um regime, para uma república corporativa
15:33e autoritária, não é? Aí, exatamente porque grande parte das outras famílias políticas
15:38que participaram no 28 de maio estão fora já.
15:41Ao regressar ao governo, Salazar implementa finalmente o subprograma de saneamento das
15:45finanças públicas. Contém a despesa, aumenta as receitas através dos impostos e evita
15:52a subscrição de um empréstimo externo junto da comunidade internacional.
15:57Mas convém dizer o seguinte, este programa de saneamento financeiro podia ter sido feito
16:02por qualquer outra pessoa, noutras circunstâncias. Aliás, ele estava a começar a ser feito
16:06no final da república, de algum modo. O que aconteceu é que é muito mais fácil fazer
16:10saneamento financeiro em ditadura. Essa é que é a questão. E, portanto, o que nós
16:15temos é um mago das finanças que regenera as finanças, torna-as, obviamente, equilibradas,
16:23mas é exatamente porque, por detrás, há toda uma alteração, logo a partir de 1926,
16:31da imprensa com censura, dos sindicatos sem greves, da contestação que acaba, dos tribunais
16:36eficazes, etc. E é essa parte toda muito importante, se quiser, de apaziguamento da
16:43sociedade à força, porque não é por concertação, é exatamente à força e da força da ditadura
16:52militar, que faz com que, obviamente, em 1928 não haja possibilidade de haver contestação,
16:56não há contestação na rua, obviamente. A repressão exercida pelas forças armadas
17:00ou policiais em Portugal, na Alemanha, Itália ou Japão, levou a que os cidadãos desistissem
17:06dos seus direitos. Havia semelhanças entre cada regime. Os parlamentos foram dissolvidos.
17:13O Reichstag, em Berlim, a Câmara dos Deputados, em Roma, a Dieta, em Tóquio, e São Bento, em Lisboa.
17:25Os partidos políticos foram proibidos, havendo apenas um único que tinha assento nos parlamentos
17:30ou Câmara dos Deputados, e cada sistema desenvolveu a censura, substituindo a imprensa livre por
17:37outra controlada pelos governos, com a propaganda a usar os meios radiofónicos como forma de
17:41divulgar a sua ideologia e, mais tarde, o terror. Cada um destes países criou tribunais
17:49especiais para julgar quem se oposesse aos regimes. Cada um deles aboliu nas leis do
17:54trabalho direitos, como o direito à greve ou ao da associação sindical, criando em
17:59sua substituição sindicatos controlados pelos governos.
18:02Os ismos, autoritarismos e fascismos devem, desde logo, que percorrem a Europa durante
18:09os anos 20 e os anos 30, devem, desde logo, ser contextualizados no pós-guerra, nas
18:14dificuldades de reconstrução, nas dificuldades de ajustamento da economia de guerra numa
18:20economia de paz. E depois temos que ter em conta duas ordens de fatores. Por um lado,
18:24os próprios problemas da democracia e, por outro, o sucesso às novas propostas que os
18:30ismos traziam, quer os autoritarismos, quer, sobretudo, os fascismos, os totalitarismos.
18:37No que diz respeito aos problemas da democracia, os problemas que a democracia atravessava,
18:42eles são muitos e, desde logo, o óbvio é que a democracia parecia não trazer soluções
18:48para os novos problemas da sociedade europeia. As propostas democráticas não respondiam
18:53aos aceios populares, aos problemas cotidianos e, portanto, havia que procurar alternativas.
18:59Depois temos uma outra série de fatores, como sejam a ausência de líderes carismáticos
19:03nessa Europa, etc., e a falta ou o malfuncionamento das instituições democráticas nesse período.
19:11Cada um delas criou uma polícia secreta, com o poder indiscriminado de prender e interrogar
19:16quem fosse suspeito de manter atividades consideradas subversivas.
19:19Um dos objetivos era a propaganda, a difusão das ideias do Partido Comunista, do projeto
19:27comunista, do marxismo e, por outro lado, também, na medida possível, detectar as
19:36aspirações dos jovens e procurar dar-lhe alguma saída em termos de panfletos, em termos
19:42de propaganda. Portanto, digamos, a atividade centrava-se até mais fundamentalmente na
19:48agitação e na propaganda.
19:50Ora, em 1933 adivinhava-se já uma Guerra de Espanha, adivinhava-se já também uma
19:58futura Guerra Mundial, com todas aquelas convulsões que existiam na Europa, com Hitler, Mussolini
20:05e todos esses líderes políticos da altura, portanto, nós, que sempre fomos um país
20:10em que acompanhávamos os nossos territórios, as nossas posições e tudo isso, achávamos
20:17necessário, como todos os outros países, aliás, de ter uma polícia que até certo
20:21ponto nos fosse informando dos possíveis ataques que poderíamos vir a ter. Portanto,
20:26essa é a razão porque aparece a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado.
20:29Na Alemanha, chamou-se à nova ordem o nacionalsocialismo, ou nazismo. Em Itália, havia uma palavra
20:36própria, fascismo. No Japão, um conjunto de nomes apelidava a nova ordem. Chamavam-lhe
20:43a nova era, a nova ordem na Ásia, flecha da prosperidade. Em Portugal, chamou-se Estado
20:50Novo, instituído em 1933 com a promulgação da Constituição e a institucionalização
20:56do Estado Cooperativo. Aproximou-se muito do modelo italiano.
21:00Há um teórico clássico desta questão, um historiador espanhol radicado há muito
21:07tempo nos Estados Unidos, Juan Lins, que teve o trabalho, ou teve a minúcia de fazer uma
21:12tipologia de regimes políticos. E se nós tentarmos simplificar essa tipologia, nós
21:17verificamos que ele considera, por um lado, os chamados totalitarismos, onde integra o
21:22caso soviético, o caso alemão e o caso italiano, e depois os autoritarismos, os diversos tipos
21:27de autoritarismo, onde integra, como é óbvio, Portugal. Portanto, à partida, dentro das
21:32famílias das ditaduras, haverá uma diferença entre o regime português, o regime italiano,
21:38o regime alemão e, obviamente, o regime soviético.
21:41Existe, desse ponto de vista, uma proximidade muitíssimo maior com, obviamente, a Itália
21:45fascista e com Mussolini, por todo o processo que ocorre em Itália, por ser um processo
21:50que, de facto, de alguns pontos de vista está um pouco mais próximo daquilo que vai acontecer
21:54aqui em Portugal. De resto, em muitos aspetos, é um pouco um modelo com o qual há algumas
22:02simpatias. Há simpatias, por exemplo, do ponto de vista da organização corporativa,
22:06há simpatias do ponto de vista da organização da Carta de Trabalho, há simpatias até,
22:10por exemplo, da organização das polícias e, portanto, há aqui alguma proximidade maior
22:15com a Itália fascista do que, propriamente, com a Alemanha.
22:19As relações com a vizinha Espanha eram olhadas com desconfiança. A jovem República Democrática
22:24dava uma grande esperança aos democratas portugueses, que aí procuravam refúgio e
22:28mantém-lhes a expectativa de mudança de regime em Portugal.
22:31Em Espanha, a vitória da Frente Popular é imediatamente seguida de uma série de
22:43acontecimentos extraordinariamente perturbantes para um regime com as características do
22:49regime de Salazar, um regime que se apoiava em forças conservadoras, que tinha o respaldo
22:54da Igreja Católica e as manifestações de anticlericalismo, perseguição à Igreja,
23:01a sacerdotes e freiras, etc., na vizinha Espanha, por exemplo, causaram uma grande inquietação
23:08em Portugal. Além disso, havia também o problema dos refugiados políticos portugueses num
23:13país vizinho que poderiam, a segundo de Mia Salazar, receber o encorajamento e o apoio
23:18ativo do Governo de Madrid. No início da Segunda República Espanhola, a 14 de abril
23:24de 1931, data que representa o fim da monarquia, foi obviamente um período de muita esperança
23:29para os portugueses que ansiavam pelo fim da ditadura em Portugal, porque se considerava
23:33que a democracia espanhola proporcionava aos portugueses a possibilidade de colaboração
23:36e de ajuda e, de certa forma, um contágio, mas no final isso não aconteceu. A primeira
23:43fase foi a fase da maior brutalidade. Não havia regras, era o puro arbítrio. Depois,
23:50com o aparecimento do chamado Estado Novo, que continuava a ser uma ditadura, mas disfarçada,
23:57houve regras, já algumas, mas também muito duras, no período que vai desde 1972-1933,
24:05em que Salazar criou o Estado Novo e é primeiro-ministro e ditador, até à fase da guerra, do final
24:12da guerra, foi a fase mais dura de todas. Com a contestação a aumentar, são julgados
24:17nos Tribunais Militares Especiais vários milhares de oposicionistas que enfrentam a
24:21justiça militar por causas de âmbito civil. A ditadura trata com mão de ferro quem se
24:27lhe opõe. O mais eficaz, aquele que vai julgar cerca
24:34de 15 mil presos políticos é criado em 1933, em 6 de novembro de 1933, é criado
24:46com uma constituição de militares, são militares que julgam, julgam com o Estatuto
24:53Militar do Código de Justiça Militar e com algumas adaptações da legislação saída
25:00entretanto durante todo o período da ditadura.
25:02As deportações em massa ordenadas pelo Tribunal de Santa Clara obtiveram efeitos atemorizadores
25:07que se manteriam até à tarde do dia 25 de abril de 1974. Por outro lado, a manutenção
25:13das pessoas em prisões sem julgamento nem culpa formada revelou-se muito eficaz no controle
25:18da oposição à ditadura. O Tribunal, de algum modo, é o fim. O Tribunal
25:24é, digamos assim, o fim deste processo. Vai-se para as colónias, está-se preso nas prisões
25:30da polícia e, de repente, a polícia leva-nos ao fim de dois, três anos ao Tribunal Militar
25:34Especial, se estivéssemos na pele de um preso. O preso até deseja ir ao Tribunal Militar
25:38Especial. O Tribunal Militar Especial, no fim de contas, o que é que diz?
25:40Bom, eu condeno à pena espiada. Você já cumpriu o seu tempo. Portanto, agora está
25:45mais uns meses na prisão e vai sair. Mas é uma instância fundamental. Por este
25:49tribunal, repito, passam muitos milhares de presos políticos, pessoas, no fim de contas,
25:55que vêm do campo republicano, todos aqueles que se manifestaram contra a ditadura, eram
25:59presos no Tribunal Militar Especial. Vêm os antigos sindicalistas todos da Primeira
26:03República e dos anos 20 e 30 e vêm os primeiros comunistas.
26:06Eu, na segunda vez que fui preso, depois de ter cumprido um ano de cadeia, fui condenado
26:11a um ano de prisão no Tribunal Militar Especial e, curiosamente, está no documento que eu
26:19exigi do Tribunal Militar, já depois do 25 de Abril. Repeti, não é? Certifica a natureza
26:27da sentença, um ano de prisão e perda dos direitos políticos por 5 anos. Foi um absurdo
26:33essa situação. Aqueles juízes não repararam que eu tinha 15 anos, estava escrito que tinha
26:38que retirar os direitos políticos e eles, mecanicamente, um ano de prisão e perda de
26:43direitos políticos por 5 anos. Foi degradado para os Açores, esteve lá
26:51há 5 anos, porque não era um preso dócil, foi torturado, esteve cerca de um ano numa
27:08coisa chamada Puterna. A Puterna é uma escada, é só uma escada, que tinha uma saída para
27:27o mar, mas não havia saída para o mar e, portanto, o preso, ou os presos, que eram
27:37aí colocados, às vezes sobreviviam, outras vezes não, porque comiam na escada, dormiam
27:49na escada, faziam as necessidades ali e tinha uma manta, sobreviveu, depois esteve noutras
28:07na solitária, portanto, não teve uma prisão fácil e a razão foi porque ele esteve envolvido
28:17nesses movimentos anarco-sindicalistas, quando o Governo quis criar os sindicatos nacionais.
28:26As sucessivas revoltas militares, que vão ocorrer entre 1927 e 1934, abalam a ditadura,
28:33mas revelam sobretudo a falta de união no campo republicano e democrático. Em fevereiro
28:37de 1927, no Porto, os apoiantes do reviralho exigem a demissão do Governo e o regresso
28:42à Constituição de 1911. A repressão, encabeçada por Passos e Sousa, deixa no solo,
28:48ao fim de quatro dias, 80 mortos e 360 feridos.
28:54Eu nasci em 6 de dezembro de 1923, portanto, era uma criança muito pequena, na altura
29:02do 28 de maio de 1926. Em todo o caso, no Monte Alentejano, onde cresci, ainda havia
29:09de entrar a PIDE para prender o meu pai, por participação na tentativa revolucionária
29:14do 27 de fevereiro.
29:16A 20 de julho do ano seguinte, no Regimento do Castelo de São Jorge, um movimento de
29:22revoltosos vê abortada a conspiração, em virtude de ter sido detetada em final de maio
29:27pela Polícia de Informação. Como resultado, mais de 80 pessoas são deportadas entre muitos
29:33oficiais. A Revolta da Madeira marca, em 1931, o final do período das Revoluções.
29:39Daí em diante, a ditadura será apenas beliscada com levantamentos de algumas unidades até
29:44ao final da sua existência. Em setembro de 1936, no dia 8, um grupo de marinheiros que
29:50reivindicavam o reingresso de 17 camaradas expulsos por motivos considerados injustificados,
29:56dá motivos a Salazar para encetar uma crise diplomática com a Segunda República Espanhola.
30:03Estava-se a pouco mais de um mês do início da Guerra Civil de Espanha. São estes marinheiros
30:09que serão deportados para o campo de concentração do Tarrafal, após o julgamento no Tribunal
30:14Militar Especial de Santa Clara.
30:15A Revolta de 8 de setembro de 1936 não foi uma revolta relacionada diretamente com a
30:26Guerra Civil Espanhola, apesar da propaganda salazarista pretender transmiti-la como mais
30:31uma razão para se retirar completamente e cortar relações diplomáticas com a República
30:35Espanhola. O embaixador Cláudio Sánchez y Alborñós, que pertencia à Segunda República
30:42Espanhola, chegou a Lisboa no mês de maio de 1936 e tinha como principal missão alcançar
30:47uma aproximação entre os dois governos.
30:54Pretendia colocar fim aos problemas que existiam sobretudo com uma guerra armada, mediática
30:59e propagandística por parte da imprensa portuguesa espanhola. Ambos os governos se denegariam
31:04mutuamente e o governo de Salazar procurava motivos para cortar as relações diplomáticas
31:09que não existiram até outubro de 1936, pouco depois da Revolta dos Marinheiros.
31:15Uma das razões que Salazar evocava era o contágio ideológico da Segunda República
31:19de Espanha. Considerava que se tratava de um contágio que causava problemas na convivência
31:24com Portugal. Existiam pessoas, tais como os marinheiros portugueses, que se deixavam
31:31arrastar por uma espécie de ideologia marxista e comunista destrutiva, como eles próprios
31:36a qualificavam, o que podia resultar numa guerra civil também em Portugal.
31:44Uma das preocupações da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado era, até certo ponto,
31:55defender-nos do imperialismo soviético que, através do Partido Comunista, nos vários
32:01países da Europa, procuravam realmente dominar a situação, expandirem-se, ocuparem
32:08uma nova forma de imperialismo, digamos assim. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e o triunfo
32:15da democracia sobre as ditaduras na Europa e na Ásia, o regime transfere a justiça
32:20militar para a justiça comum. O Tribunal Militar Especial é encerrado e dá lugar
32:25ao Tribunal Plenário, que funciona na boa hora, mas nem sempre o que parece é.
32:30Bom, os tribunais plenários eram uma farsa, a começar pela própria Constituição.
32:38Os juízes dos tribunais plenários eram nomeados, ao contrário do que acontecia com os juízes
32:47da magistratura para os restantes tribunais, eram nomeados pelo Ministro da Justiça. Portanto,
32:54eram elementos da confiança do Governo que, no fundo, estava pressuposta à ideia de que
33:03estavam ali para servir os objetivos do Governo, para julgar crimes de natureza política.
33:11Crimes de natureza política que o Governo considerava crimes, aproximava aos crimes
33:18comuns. Governamentalizada a justiça, abriu-se assim
33:22espaço para um controlo muito mais ambicioso, o das mentalidades. A longa teia decida pela
33:28propaganda da ditadura foi sendo habilmente alargada sob a autoridade arbitral e crescentemente
33:33indiscutível do chefe do Governo. Salazar consegue a concorrência dos vários
33:38setores conservadores até aí desavindos para levar a cabo a sua política do espírito.
33:43À semelhança da Alemanha e da Itália, e embora estes países se encontrassem distantes
33:49de Portugal, o regime adquira alguns dos seus ticas. Cada país tinha o seu uniforme.
33:55Em Itália eram as camisas pretas. Na Alemanha as camisas eram pardas. Em Portugal eram castanhas
34:03escuras. Criada em 1936, a Legião Portuguesa era uma
34:08milícia sob a alçada do Ministério do Interior e da Guerra. O seu objetivo era defender o
34:14património espiritual e combater a ameaça do comunismo e do anarquismo. Durante o Estado
34:19Novo, enquanto decorreu a Segunda Guerra Mundial, a Legião Portuguesa foi a única
34:24organização oficial que adotou e defendeu abertamente a filosofia nazi.
34:37Mas era importante iniciar a formação dos espíritos em tenridade. Na Alemanha, a juventude
34:42hitleriana desfilava altiva perante as tribunas dos mentores nazis.
34:51Os futuros camisas negras aprendiam desde cedo a quem servir. A mocidade portuguesa
34:56pretendia abranger todos os jovens em idade escolar e tinha como fim estimular o seu desenvolvimento
35:02físico, a formação do caráter e a devoção à pátria, no sentimento da ordem, no gosto
35:07pela disciplina e no culto pelos deveres morais, cívicos e militares. A ela deviam
35:13pertencer obrigatoriamente todos os jovens do sexo masculino com idades compreendidas
35:18entre os sete e os vinte e cinco anos. As raparigas não eram esquecidas. O papel da
35:25mulher estava bem definido no quadro formativo das mentalidades. Nas filiadas, era cultivado
35:31o gosto pela vida doméstica e as várias formas do espírito social orientadas para
35:36o papel da mulher na família, no meio a que pertence e na vida do Estado.
35:43Sob as velhas bandeiras de Deus, Pátria, Autoridade, Família, Trabalho, agora transformadas
35:49em dogmas do Estado Novo, António Ferro é empossado como diretor do Secretariado de
35:54Propaganda Nacional. O SPN vai ajudar a encenar as grandes manifestações de apoio ao regime.
36:02Para o Secretariado de Propaganda Nacional é uma peça fundamental no processo de institucionalização
36:15de um dispositivo, que é um dispositivo cultural, ideológico, e que tem por objetivo naturalmente
36:23informar as mentes, digamos assim, ou seja, impedir que haja movimentos de pensamento
36:30que transgridam as normas que a ditadura naturalmente estabeleceu para si próprias. E percebeu claramente
36:36desde o início que essas normas eram fundamentais no sentido da sua consolidação. Nós estamos
36:42perante uma ditadura que não é uma ditadura caracterizada por uma violência absoluta,
36:46mas sim pela institucionalização de um conjunto de dispositivos, que são dispositivos fundamentalmente
36:51de natureza preventiva e que têm por objetivo enquadrar e moldar o pensamento. E é nesse
36:56sentido que o Secretariado de Propaganda Nacional surge precisamente.
37:00António Ferro dirige então uma ampla atividade de cariz cultural, que predispunha o indivíduo
37:06para certas formas de comportamento e de pensamento espontâneo.
37:09Um homem que vem do modernismo, um intelectual, e que se transforma talvez no principal intelectual
37:14orgânico do regime, na medida em que vai conseguir delinear e controlar também toda
37:20essa máquina que foi o Secretariado de Propaganda Nacional, e que vai inclusivamente ao ponto
37:25de ser ele, como é sabido, que dirige um conjunto de entrevistas que são extremamente
37:29importantes para a caracterização do regime, com o próprio ditador, Gonçalo Azar.
37:33As manifestações organizadas de apoio ao Estado Novo inserem-se no estabelecimento
37:37de uma cultura do regime, que tem como preocupação moldar a mensagem a transmitir publicamente
37:42e sob a qual se quer enquadrar os indivíduos. Em 1940, em plena Segunda Guerra Mundial,
37:49e numa altura em que as ditaduras pareciam triunfar, a exposição do mundo português
37:54é talvez a maior manifestação de propaganda do regime. Levada a cabo junto ao Tejo, comemorou-se
38:01assim a Fundação de Portugal e da Independência, evocando-se os descobrimentos. A exposição
38:07foi um marco crucial de cumplicidade dos artistas com o Estado Novo, mas nem todos estavam
38:11ao lado de Salazar.
38:13Naturalmente o regime teve os seus intelectuais, e que naturalmente cumpriram o seu objetivo,
38:21mas a oposição, principalmente a partir de meados dos anos 30, o que nós assistimos
38:26é num quadro internacional de emergência dos fascismos e num quadro de implantação
38:32da ditadura e de consolidação da própria ditadura, assiste-se a um processo de radicalização,
38:37um processo de radicalização política que leva a que, principalmente a partir das camadas
38:42estudantis, haja uma tentativa de dar conteúdo à cultura, ou seja, de dar um papel, uma
38:50função social à intervenção cultural. É nesse sentido, por exemplo, que a partir
38:55dos anos 30, recebendo também alguma influência da parte das correntes mais extremadas que
39:01vêm da república, designadamente os anarco-sindicalistas, que há uma tentativa de teorização e um
39:09esforço de teorização do que é uma arte social e que é conseguida nos mais diferentes
39:16campos de intervenção cultural e que dá origem àquilo que ficou conhecido como a
39:21escola neorrealista, que, portanto, defende claramente o primado do conteúdo sobre a
39:28forma nas manifestações culturais e, nesse sentido, consegue polarizar um conjunto significativo
39:33de intelectuais que, do ponto de vista da produção cultural, nos anos 40, pelo menos,
39:39não sei se se pode dizer que são hegemónicos, mas que têm uma influência bastante grande
39:43apesar do país sobre o qual intervinham.
39:46Para controlar os que tinham opinião crítica, foi criada a Direção-Geral dos Serviços
39:52da Censura. A partir de então, passou a ser comum encontrar na primeira página dos jornais
39:57a frase, visado pela censura.
39:59A censura será talvez a marca mais indelével na formação e deformação das mentalidades.
40:06A Constituição Portuguesa de 1933 é publicada no mesmo dia da lei especial que regulava
40:13o exercício da censura. Para Salazar, os homens, os grupos, as classes, veem e observam
40:20as coisas, estudam os acontecimentos à luz do seu interesse. Só uma entidade por dever
40:25e posição, tudo tem dever à luz do interesse de todos. O paternalismo do Estado, personificado
40:31no lápis azul, cefava toda a obra que não se enquadrasse na visão da realidade imposta.
40:36Era a violação do livre pensamento.
40:39De qualquer modo, a censura é fundamental neste conjunto de mecanismos, de dispositivos
40:46de natureza preventiva, já que a censura impede, através dos meios de comunicação,
40:51que um conjunto de informações chegue à população, ainda que essa população seja
40:56uma população muito iletrada, portanto com taxas de analfabetismo muito grandes, mas
41:01mesmo assim a preocupação de cuidar da notícia que sai, da notícia que é publicada ou da
41:06obra literária que é publicada, ou da obra artística em geral, isso, naturalmente,
41:12a censura insiste muito a esse nível, por vezes com aspectos que são aspectos que nos
41:18surpreendem hoje, porque são aspectos às vezes até caricatos, porque, por exemplo,
41:24em Portugal não havia suicídios, porque a ideia de suicídio era uma ideia potencialmente
41:29subversiva, digamos assim.
41:31Eu lembro-me de um caso fantástico em que Portugal jogou contra a então DDR, a Alemanha
41:36Oriental, ganhámos, e o jornalista que fez a cobertura do jogo escrevia que a Alemanha
41:43Oriental, a DDR, tinha jogado muito bem.
41:47Eles cortaram porque um país comunista não podia jogar bem futebol.
41:50Apreendiam coisas inconcebíveis, como uma das que mais serviu de ridículo para perceber
42:01efetivamente o que eles não entendiam, era um livro que era sobre o concreto armado,
42:07pronto, porque tinha a palavra armado, portanto, eles não passavam para além disso, armado
42:13é armada, são armas, e, portanto, isto é terrorismo.
42:20Adquirir um livro considerado proibido exigia engenho e mútua confiança entre livreiro
42:24e leitor.
42:25Apesar das dificuldades, uma grande parte das obras publicadas no estrangeiro conseguiam
42:31chegar aos estandes dos clientes.
42:34Os livros vinham em caixotes misturados com outros livros, às vezes sem capas, lá se
42:40viam.
42:41Mas, por exemplo, o Leão de Castro tinha uma livraria, antes mesmo de ser um grande
42:45editor, tinha uma grande livraria aqui perto do Camões, onde eu ia quase todas, muitas
42:53vezes, e trouxe tudo, o Marx, o Engels, o Lenin, o Stalin, todos os livros que iam
42:59saindo e que eram considerados subversivos, que eu tenho-os hoje em casa ainda, e comprei-os
43:05nessa altura, e comprei o Obrito, que era o que estava por baixo de mim na casa onde
43:10eu vivia vivo, e o Obrito, o Obrata, da livraria Obrata, mais tarde também comprei-me os livros
43:17clandestinos, e recebíamos tudo mais ou menos.
43:21Das obras mais frequentes era tudo aquilo que tinha a ver com Marx, capitalismo, filósofos,
43:30diversos, tudo o que era pensadores, pensamentos, tudo o que era ligado à parte de determinado
43:41tipo de movimentos, isso era tudo, Proudhon, Marx, Lenin, isso tudo era apreendido.
43:51Mas a vontade de divulgar outros pensamentos era fortemente penalizada pela ditadura, eufemisticamente
43:56chamada Estado Novo.
43:59O longo braço da censura era coadjuvado pelos agentes da PIDE ou, a partir de 1969, pela
44:05Direção-Geral de Segurança.
44:06A censura não era a PIDE quem fazia, quem fazia a censura eram os militares, e era nomeadamente
44:12um grupo de militares já na reserva que tinha um gabinete onde se fazia a censura.
44:17Como é que ela era feita, eu não sei.
44:20Atribuía-se um bocado à PIDE a censura porque quando os livros e os jornais eram apreendidos,
44:24normalmente era uma viatura nossa que lá ia buscar, porque os militares pediam ir lá
44:28buscar aquilo e esses livros e esses panfletos e essas coisas eram queimados, mas a censura
44:35não era feita pela PIDE, nós não tínhamos nada a ver com isso, só o transporte e nem
44:38sempre éramos nós.
44:39E eram muitas as obras apreendidas, demasiadas.
44:45O documento que se apresenta é cópia de um auto levantado na livraria Sota Timor, em
44:50Dili.
44:51No ano de 1972, em plena primavera marcelista, só deu uma única vez, numa única editora,
44:59foram apreendidos mais de 73 mil exemplares de variados títulos, entre os quais alguns
45:04livros da culinária.
45:05Era uma brigada dirigida por um antigo dirigente da PIDE e os elementos que vieram eram um
45:17misto de PIDE e de atividades económicas, vasculharam tudo, não encontraram nada,
45:25de modo que depois decidiram apreender livros.
45:31Apreenderam umas dezenas de milhares de exemplares, umas dezenas de títulos e foi tudo a eito,
45:39foi a produção dos últimos meses, ou seja, era uma tentativa de decapitar a casa, anular,
45:48eliminar um adversário, porque a casa, de facto, tinha uma atitude, um posicionamento
45:55crítico face ao comportamento do regime, através dos livros que publicava.
46:02Portanto, o que se pretendeu foi anular a casa, anular a atividade da casa e, por exemplo,
46:10um dos livros apreendidos foi o ABC da culinária, da Itelvina Lopes Almeida, que não tinha
46:19nada de político, mas é evidente, era cozinha pura e dura.
46:24Um outro livro aos primeiros nove meses de vida, que era um livro que ensinava o que
46:28era a gestação e toda uma série de outras obras no estilo e algumas também que o governo
46:34poderia considerar que eram incómodas para a sua forma de atuar.
46:40A censura assumia igualmente um papel de terrorismo económico.
46:45António Barata, um dos livreiros onde se poderiam encontrar obras de autores proibidos,
46:50sentia mensalmente na pele os efeitos das apreensões.
46:54Portanto, era, penso que o objetivo, e ele próprio relata, que muitas vezes era para
47:02desmoralizar estas apreensões sucessivas, porque isso, efetivamente, tinha um rombo
47:08económico bastante grande e, portanto, era com algum sacrifício, com certeza, que a
47:18pessoa não desmoralizava facilmente, tendo apreensões sucessivas, muitas vezes duas,
47:23três vezes por mês, a levar 50, entre 50 a 60 livros, como se pode ver por alguns autos
47:31de apreensão de livros que eram dentro dessa quantidade e, portanto, na altura era significativo.
47:40Preocupada com os terríveis acontecimentos durante a guerra civil espanhola, a censura
47:44cumpria escrupulosamente as determinações de Salazar, filtrando atentamente tudo o que
47:48era reportado da frente de combate.
47:51Mário Neves foi o primeiro jornalista português a relatar os graves acontecimentos de Batajós,
47:56em 1936.
47:57O trabalho de Mário Neves, em agosto de 1936,
48:13durante a Guerra Civil de Espanha, foi um trabalho fundamental para se saber o que aconteceu
48:17em Batajós, na Praça de Touros.
48:21Na altura houve uma execução em massa de 3 ou 4 mil pessoas, há muitas estimativas
48:29mas nunca houve um número certo, porque as autoridades franquistas sempre o esconderam
48:33e o negaram.
48:34Mas Mário Neves esteve lá, ouviu e contou.
48:39No princípio da Batalha da Guerra Civil, a censura portuguesa ainda não tinha estabelecido
48:44todas as suas estruturas e não tinha posto em marcha todo o seu poderio militar.
48:51Na hora de contar o que aconteceu em Espanha, Mário Neves simplesmente publicou o que viu,
48:55com a honra de um jornalista de 24 anos que chegou a uma guerra civil e que pretendia
49:00transmitir a máxima veracidade possível do que estava a acontecer num país agitado.
49:04Para além da censura à imprensa, o governo português participou ativamente com o envio
49:09de legionários, que ficaram conhecidos como os viriatos, e com remessas de bens alimentares.
49:14Para Salazar, era fundamental dar todo o apoio aos nacionalistas espanhóis.
49:20O triunfo do franquismo ajudaria a manter no poder António de Oliveira Salazar.
49:35Portugal teve um papel discreto, mas muito importante, muito efetivo, no apoio ao levantamento
49:43militar protagonizado pelo general Franco.
49:46Inicialmente esse levantamento não foi bem sucedido, ou seja, rapidamente surgiram bolsas
49:51de resistência de forças leais ao governo republicano espanhol e a situação descaiu
49:59para um impasse militar.
50:03No entanto, as forças leais ao general Franco conseguem controlar praticamente toda a fronteira
50:08terrestre com Portugal ao longo do ano de 1936, e nesse sentido Portugal tornou-se uma
50:14retaguarda vital para o abastecimento de produtos de primeira necessidade e de material militar
50:21para as forças afetas ao general Franco.
50:25Os mais de 350 mil mortos da guerra civil espanhola não pesaram na consciência de
50:30Salazar e de Franco.
50:32Para os dois ditadores, a estabilidade dos regimes tornava-os dependentes do sucesso
50:36de cada um.
50:39Qualquer das duas ditaduras irá permanecer inalterável até à morte dos seus mentores.
50:45Salazar deixa de conduzir os destinos de Portugal em 1968.
50:49Em sua substituição é nomeado Marcel Caetano, o que cria algumas expectativas.
50:56Nós sabemos que Marcelo Caetano está longe de ser um democrata.
50:59É um liberal, como diz Alçada Batista, da longa entrevista que lhe fez, um liberal que
51:04pelas circunstâncias que encontrou teve que usar da autoridade.
51:09Ele acreditava num projeto de reforma e, em última análise, num processo de expurgo
51:16dos vícios, dos problemas que o autoritarismo, que o regime salazarista tinha.
51:21E, portanto, a proposta que ele tinha preparado desde os anos 40, quando se tornou o líder
51:26da ala reformista do regime, passava desde logo por uma aposta no desenvolvimento económico,
51:32por uma aposta na industrialização, por uma descompressão social e por uma maior
51:38liberalização da política.
51:41Não me criou expectativa nenhuma, sempre estive convencido que ele se tratava de uma
51:47farsa.
51:50Eu conheci muito bem o professor Marcelo Caetano, que foi o meu professor.
51:54O professor Marcelo Caetano era um homem estruturalmente do regime.
51:58Do regime salazarista foi sempre, desempenhou muitas funções.
52:03Evidentemente que quis aparecer como um liberal e quis dar, enfim, quis fazer qualquer coisa
52:13que pudesse ser considerado no mundo, porque ele conhecia melhor o exterior do que Salazar,
52:21que nunca saiu de Portugal, e, portanto, ele sabia que era preciso convencer o mundo e
52:29tentou fazê-lo.
52:31Mas as reformas propostas chegavam muito tarde.
52:34De facto, elas tinham sido pensadas por Marcelo na década de 40.
52:39Mas desde 1961, o país tinha aberto três frentes de combate nos seus territórios ultramarinos.
52:45A guerra consumia jovens, obrigava outros a partir e não tinha fim à vista.
52:51No meio de tudo isto, perante uma sociedade cansada e com um profundo sentimento de estagnação,
52:56surgem várias formas de contestação no país dos brancos costumas.
53:01A censura, braço forte do regime, começa a dar sinais de enfraquecimento.
53:08O que me parece que caracteriza essa fase são incapacidades muito grandes de pôr cobro
53:16a uma pluralidade e uma diversidade de situações que já era tão grande que ultrapassava a
53:22própria capacidade operativa do regime.
53:25E eu penso que é esse caráter contraditório, como que muitas vezes se vê proibir determinado
53:32tipo de coisas e outras conseguem escapar às malhas de censura, julgo eu que reflete
53:38essa vitalidade por um lado das culturas da oposição e por outro lado as dificuldades
53:43crescentes que o regime ia tendo para continuar a manter a função censória que lhe era
53:49evidentemente fundamental e que procurou manter, como sabemos, até ao fim praticamente.
53:54O que é a censura?
53:56Quando falamos do fenómeno de tourada no nosso país, curiosamente estamos a falar
54:02da ausência de censura.
54:03O que causa estranheza é porque é que a canção passou.
54:06A canção não foi censurada nos moldes em que entendemos a censura.
54:11Escreve-se uma coisa para um jornal, para uma canção, para um filme, para qualquer
54:15coisa e é censurada.
54:16É arriscado.
54:17Não é lápis lázul?
54:18Já está.
54:19Corta-se.
54:20Com esta canção, curiosamente, não aconteceu isso.
54:23O que aconteceu foi a grande surpresa do porquê é que não foi censurada.
54:27Temos que fazer uma outra raciocínio sobre isto.
54:29É a nossa estranheza, naquele momento, porquê é que não foi censurada.
54:34Veja quanto a censura não estava entranhada na nossa sociedade, nos nossos hábitos, que
54:40chegávamos ao ponto de estranhar porquê é que não foi censurada.
54:44Eu acho que a minha geração foi muito prejudicada na maneira de escrever, quando depois veio
54:51o 25 de Abril e a liberdade, tivemos todas dificuldades em readaptar-nos.
54:56Aqueles que ainda lutavam, porque houve muita gente que se ajeitou, se acomodou e que deixou
55:01de se preocupar, portanto passou a funcionar dentro do sistema.
55:04Mas aqueles que ainda se preocupavam e que tentavam passar quer notícias, quer opinião,
55:09eu, pelo menos, tive dificuldade em deixar de escrever nas entrelinhas, porque muitas
55:13vezes, para passar uma mensagem, era preciso escrever quatro linhas quando depois bastava
55:19uma, não é?
55:20A geração seguinte, uma geração de transição, geração atual, acho que às vezes, e eu
55:26digo-lhes isso muitas vezes, ignoram e, naturalmente, o fazem, porque já nasceram depois do 25
55:34de Abril, que houve censura e, portanto, sobre esses talvez não tenha havido consequências,
55:40mas eu penso que essa memória deve ser mantida.
55:42A censura foi oblida com o 25 de Abril.
55:51Subtil, condicionou fortemente até aí os espíritos de várias gerações de portuguesas.
55:57A censura feriu um país na liberdade de aprender, de pensar, na liberdade para ser.
56:13Não importa sol ou sombra, camarotes ou barreiras, toriamos ombro a ombro as feras.
56:34Ninguém nos leva ao engano, toriamos mano a mano, só nos podem causar dano de esperas.
56:44Entram guisos, chocas e capotas, e mantilhas pretas.
56:49Entram espadas, chifres e derrotes, e alguns poetas.
56:54Entram bravos, cravos e dichoces, porque tudo mais são tretas.
57:04Entram vacas depois dos porcados, que não pagam nada.
57:09São ombrados e holers dos navos, que não pagam nada.