Um documentário que recorda os 48 anos de ditadura em Portugal com testemunhos de presos políticos, imagens da época e fotografias de arquivo inéditas.
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ConhecimentosTranscrição
00:00Os chamados ismos, os autoritarismos e os fascismos que percorrem a Europa durante os
00:27anos 20 e 30 devem ser enquadrados no pós-guerra.
00:31As dificuldades de ajustamento da sociedade europeia, que passava de uma economia de guerra
00:36para uma economia de paz, a que se somava à ausência de líderes carismáticos no
00:40campo democrático, fizeram surgir personalidades que apresentavam propostas que iam ao encontro
00:45das inquietações das populações.
00:50Apoiadas por organizações militarizadas e com uma utilização muito eficaz da propaganda
00:55através da rádio e jornais, souberam incutir a necessidade da ordem e da segurança e,
01:00com isso, promover alterações profundas nos modelos constitucionais.
01:05O movimento militar do 28 de maio de 1926 pôs término à Primeira República.
01:13Cansados de viver um período de grande instabilidade política e social, os portugueses viram com
01:19bons olhos a chegada de um regime mais autoritário, que pusesse fim à onda de greves, tumultos,
01:25faltas de emprego e segurança.
01:27Logo após os primeiros dias, encerrou-se o Parlamento, dissolveram-se os partidos políticos,
01:33suspendeu-se a atividade sindical e instituiu-se a censura.
01:37Inicialmente chamado para ocupar a pasta das finanças, o que faz com sucesso, António
01:41de Oliveira Salazar vê por isso o seu prestígio aumentado e ocupa o lugar de Presidente do
01:47Conselho de Ministros.
01:49Aproveitando os mecanismos repressores da ditadura militar, Salazar vai transformá-lo
01:53em 1933 num regime constitucional com características corporativa e autoritária.
02:00Éramos um Estado subordinado à moral e ao direito, de tal maneira que acima dos interesses
02:07do cidadão estavam os interesses da coletividade.
02:14Era um Estado unitário porque tinha um governo único para todo o território nacional
02:22e era uma república democrático-orgânica e anti-parlamentar.
02:27Democrático-orgânica significa que o indivíduo não votava isoladamente, mas que votava integrado
02:32na corporação no meio em que vivia, e anti-parlamentar porque não existia o Parlamento e precisamente
02:41foi uma das razões porque se fez a Constituição de 1933 foi porque verificou-se que o sistema
02:47parlamentar da Constituição de 1911 tinha levado o país praticamente à bancarrota,
02:53às disputas partidárias, economicamente estávamos muito em baixo e, portanto, a Constituição
03:02de 1933 procurava remediar estes defeitos.
03:07Ainda nesse ano, Salazar promulgou o Decreto-Lei 22.992 e com ele unifica, na PVDE, as duas
03:14polícias existentes, a Polícia Internacional Portuguesa e a Polícia de Defesa Política
03:19e Social.
03:20Para além da unificação, as capacidades de atuação da Polícia de Vigilância e
03:24Defesa do Estado são aumentadas.
03:26O que aconteceu foi que elas, a pouco e pouco, foram sendo dadas mais capacidades, mais capacidades
03:33para prender, manter durante muito tempo, para terem prisões especiais, para poderem
03:39decidir inclusive sobre a vida política dos presos, mesmo depois deles terem ido a tribunal,
03:46para poderem conduzir os processos até tribunal, digamos que isso foi o processo que aconteceu.
03:52Esse processo foi um alargamento da capacidade da Polícia, através de um conjunto de leis
03:56especiais da ditadura militar, a partir dos anos 30, que lhe dão essas capacidades.
04:02Desde sempre que a contestação ao regime foi feita por diversas forças ou orientações
04:07ideológicas, reprimidas sempre com brutalidade logo na fase inicial da ditadura, a PVDE tinha
04:14como principal objetivo garantir a manutenção do Estado Novo.
04:18Já nessa altura, muitos optavam por sair e a Espanha era o destino mais à mão.
04:23Mas, efetivamente, os imigrantes portugueses sempre contavam com a colaboração, digamos,
04:29daqueles partidos que tinham uma afiliação de esquerda, sobretudo, e que o que procuravam
04:39era que na península houvesse regímenes democráticos, não regímenes autoritários.
04:45No período de 1933 a 1936, as relações entre o governo de Salazar e a Segunda República
04:51Espanhola, de Dele Rousse e Gil Robles, as coisas melhoraram, precisamente porque os
04:56imigrantes portugueses passaram a ter um papel, digamos, muito menos integrado e não houve,
05:02por suposto, colaboração, senão, incluso, de algum jeito, persecução, não persecução
05:07propriamente, mas uma certa repressão desses imigrantes que tentavam, de algum jeito, servir-se
05:12da Espanha para tratar de destabilizar Portugal.
05:15O triunfo do movimento falangista tornou mais difícil a efetuar a oposição a partir de
05:22Os Tribunais Militares Especiais irão deportar mais de 15 mil presos políticos até 1936.
05:29Com métodos repressivos, inspirados nos campos de concentração, é inaugurado, em 1936,
05:35a Colónia Penal do Tarrafal.
05:38Tudo aquilo que funcionava nos campos de concentração da Alemanha, principalmente em Dachau, era
05:45aquilo que se fazia aqui, ou seja, os modos de tratamento, a forma como os presos eram
05:50tratados e a forma como eram levados para os campos, neste caso na Alemanha, era semelhante
06:03àquilo que acontecia aqui.
06:04Situado na parte norte da ilha de Santiago, a 74 quilómetros da cidade da Praia, capital
06:10de Capo Verde, o concelho do Tarrafal foi o lugar escolhido para o acolhimento dos deportados
06:14opositores ao regime do Estado Novo.
06:17Talvez uma das coisas também que levaram o Estado Novo a construir a prisão aqui é
06:23porque Tarrafal ficava muito distante da cidade da Praia e a circulação e a distância
06:29da cidade da Praia impedia os presos de se revoltarem, ou seja, de terem acesso aos meios
06:36de comunicação.
06:37Os primeiros presos a chegar foram os ligados à revolta dos marinheiros, sindicalistas
06:43e alguns deportados comunistas.
06:46Vão para o Tarrafal e vão inaugurar o Tarrafal no fim de outubro de 1936.
06:52O barco que os levou passou primeiro pela Madeira e pelos Açores para receber deportados
06:57que aí se encontravam e deixar outros.
06:59O barco parou ali na anciada de Angra do Heroísmo, saíram vários presos, nomeadamente o Aiala,
07:08que tornou-se conhecido, o Leão de Castro.
07:11O meu pai foi preso porque esteve envolvido nos acontecimentos dos anarquistas e dos
07:21sindicalistas do fim dos anos 20.
07:27Foi degradado para os Açores, esteve lá quase cinco anos.
07:34Nos Açores saíram alguns, meramente assim, e entraram outros, entrou o meu pai, aconteceu
07:40o Tarrafal, Bento Gonçalves, José de Souza, o Julio Melo de Fogaça, o Mário Castelhano,
07:46o Rígio, gente anarquista, comerista, e fomos inaugurar o Tarrafal, estrear o Tarrafal.
07:54Chegamos lá no dia 29 de outubro de 1936.
07:58E aqui em Cabo Verde temos duas estações, ou seca ou de chuva, e em outubro o clima
08:07a temperatura já era alta e os presos começaram a deparar com dificuldades em termos climatóricos,
08:18porque não estavam habituados a isso.
08:21Mal não estavam habituados, mas entraram numa outra realidade que é, dentro deste
08:26clima, dentro deste arquipélago, foram inseridos em barracas sem mínimas condições de vida.
08:33As condições eram um bocado precárias, mas não todas, há alguns que não viveram
08:41aquela precariedade.
08:44Caso do senhor Bento Gonçalves, primeiro secretário comunista português, caso do
08:53padre Augusto Santana, estes viviam nas condições melhoradas, porque eram pessoas conhecidas,
09:02eram pessoas de alto conhecimento, então viviam-se com as condições melhoradas.
09:08Mas o resto era de qualquer maneira.
09:12A situação de mal-estar foi uma constante desde a primeira grande vaga de reclusos que
09:17ali deu entrada.
09:19A ausência de condições de higiene no interior das barracas, o meio envolvente e a falta
09:23de assistência médica e medicamentosa apargam os trabalhos forçados levados a cabo dentro
09:28e fora do campo, levou a que quase de imediato houvesse uma tentativa desesperada de fuga
09:33com consequências muito graves para os prisioneiros.
09:38Então inventaram uma fuga que foi falhada e uma forma de reprimir esses presos era fazer
09:44uma vala de forma que houvesse maior circulação de água dentro do campo, mas também de forma
09:50que começassem a pensar que quem manda tem o poder de fazer tudo e eles simplesmente tinham
09:57que obedecer.
09:58E projegávamos a fazer aquilo, a trabalharmos no fundo da vala com calores enormes, começaram
10:04a cair vários presos, depois numa semana morreram seis e eles acabaram-nos a suspender
10:11os trabalhos ali.
10:13A construção do talude ficou ligada à tragédia.
10:17A desidratação, a par com o paludismo contraído no final da estação das chuvas, eliminou
10:22seis homens habituados a esforços físicos prolongados durante aquela que ficou conhecida
10:26como a semana trágica.
10:28Foi um período muito difícil, com muita gente quase que não morreu por acaso, havia pessoas
10:38que estavam no aposentador de enfermaria que já cheiravam mal, se salvaram-se não se
10:44sabe como no limite, apareceu lá um garrafão de canino, não tínhamos de brincar com os
10:49senhores, tínhamos tentado uma fuga coletiva e tínhamos sido castigados, tínhamos retirado
10:54os medicamentos todos e, portanto, estávamos completamente indefesos e apareceu lá um
11:02garrafão de canino, aquilo talvez até psicologicamente nos tenha dado um certo alento.
11:09A 3 mil quilómetros de distância, as famílias dos presos faziam um esforço para lhes enviar
11:14o que eles pediam.
11:16Muitos dos medicamentos eram desviados pelo próprio médico do campo, Gemeraldo Pais
11:21de Prata, que deixou uma memória muito viva no Tarrafal, passados mais de 70 anos.
11:27O médico, o Gemeraldo Pais de Prata, mais conhecido por tralheira dentro do quotidiano
11:35prisional, dizia, e como disse bem, ele afirmava constantemente que estava no Tarrafal simplesmente
11:42para cumprir os deveres do Estado Novo, e um dos deveres do Estado Novo, o objetivo
11:49do Estado Novo é deteriorar, quer física, quer psicologicamente e, porque não, levar
11:55à morte os inimigos do Estado Novo e da ditadura.
11:58O medicamento que havia era o medicamento que os familiares mandavam para os presos,
12:04esse que era o medicamento que existia.
12:06Disseram-me que lá para os presos, que ele era mau, que ele dizia que era só para fazer
12:14bilhete de óbito e não receitas médicas.
12:18Porque se ele não dava consulta, não tratava os doentes, era para 70 anos de óbito.
12:2370 anos de óbito era para encher-lhe a casa da morte.
12:26Nas consultas passava o tempo a bater com o lápis, fingia que nos ouvia, e depois tinha
12:34sentenças como esta, até as costas, olha, a receita é dar-lhe umas pinceladas de tintura
12:42de baixo para cima, de um lado para o outro.
12:44A cruzar connosco, claramente.
12:47Eu me recordo de que ele fez lá várias operações de sangue frio, que era uma coisa horrível.
12:51O gajo era um sádico, cruzava com aquilo.
12:54A par das doenças não tratadas, outro tratamento era dado aos presos.
12:59A frigideira situava-se nesta área e, infelizmente, destruíram um pouco a história, não temos
13:08a precisão do sítio em concreto, mas ficava à beira da beira de Xambão, até porque
13:16os presos políticos diziam, ou os presos do campo de concentração diziam, que enquanto
13:22durante o tempo que estavam na frigideira, principalmente à noite, ouvia os juzuns das
13:29mulheres de Xambão, que gostavam muito da diversão noturna.
13:37A frigideira fora do campo, frente da nossa caserna, tinha um metro e vinte de altura,
13:48de modo que o homem lá dentro não pode ficar em pé.
13:51Tinha que ficar sempre dobrado ou sentado no chão.
13:54Essa que é a frigideira original.
13:56Tivemos três dias sem beber água.
13:58Quando nos foram para a água, a língua estava tão inchada dentro da boca, eu não conseguia
14:02beber água.
14:03Parecia fel, não é?
14:05Começámos a desinchar a língua, molhando a língua com água, até que ao fim de um
14:11tempo, conseguimos começar a beber água.
14:13Por esta altura, da Europa chegavam sinais a Salazar de que os autoritarismos e os fascismos
14:18gozavam de boa saúde.
14:20Com mão de ferro e alguns safanões, como disse Salazar em 1932, o regime ia calando
14:26os que se lhe opunham e isolava-os longe de Lisboa.
14:31As notícias eram proporcionadas maioritariamente, na maior parte, por bocado de jornal, pedaço
14:40de jornal que os guardas limpavam o rabo, sujo de inserção, que nós apanhávamos quando
14:48vinham a estragar cá fora.
14:50E nós liamos, às vezes, desfazados 15 dias, um mês.
14:54E nós fazíamos um circo quando chegávamos lá dentro para ler o jornal, as notícias
14:58de todo o mundo, como havia desenhoro.
15:01Mas, de resto, nós que estávamos a comunicar, nós tínhamos jornal, nós tínhamos rádio,
15:06nós fazíamos um circo.
15:08Na frigideira do Tarrafal, Gabriel Pedro esteve um total de 135 dias.
15:14Entre oito reclusos, foram repartidos 750 dias de permanência na frigideira.
15:21Mas o final da Segunda Guerra Mundial sobressalta a ditadura portuguesa.
15:27A PIDE foi criada, realmente, em 1945, pelo Decreto-Lei nº 35.044.
15:35Ao fim e ao cabo, a Polícia Internacional e Defesa do Estado fazia parte, anteriormente,
15:43da Polícia Judiciária.
15:44Era também uma Polícia Judiciária.
15:47Foi destacada da Polícia Judiciária, passou a pertencer ao Ministério do Interior, ou
15:50a depender do Ministério do Interior.
15:52E a sua função era, precisamente, prevenir e reprimir os atos delituosos contra a segurança
16:00do Estado, nomeadamente aqueles que procuravam alterações, que procuravam alterações
16:06de direitos humanos.
16:08Prevenir e reprimir os atos delituosos contra a segurança do Estado, nomeadamente aqueles
16:12que procuravam alterar a Constituição por meios não consentidos, por meios violentos.
16:20Essa era a atitude da Polícia Internacional.
16:23No campo do Tarrafal, os presos sentiram as alterações provocadas pela nova Ordem Mundial.
16:28Para o regime, convinha limpar rapidamente as provas de que também tinham um campo de concentração.
16:35E depois, quando a situação inverdeu, alguns procuravam o contrário, procuravam limpar-se.
16:41E alguns, por fim, acabaram por nos trazer quase diariamente os comunicados dos aliados.
16:47É um fenómeno curioso.
16:49Depois da guerra, é claro que o regime ficou numa situação difícil, porque colaborou
16:53com os nazis, havia colaborado com o Franco na Guerra do Sul de Espanha de maneira escandalosa,
16:59e, portanto, toda a gente julgava que o regime não se ia aguentar.
17:03Mas o regime foi salvo, como aliado de Espanha, por a traição das democracias ocidentais,
17:09que tinham medo que esses países se transformassem em países comunistas e, portanto, preferiam
17:15os ditadores, que lhes faziam os fretos todos que eles queriam.
17:18Isolado, mas atento ao correr dos novos ventos da história, Salazar arquiteta uma diplomacia
17:24hábil para manter estáveis os regimes peninsulares e garantir o apoio da Inglaterra.
17:30Em 1939, Portugal celebra, com a Espanha, um tratado de amizade e cooperação, e no
17:37ano seguinte reforça-o com um protocolo adicional.
17:59Estes dois acordos, estes dois tratados, serviram muito bem a diplomacia salazarista
18:11no seu objetivo de manter o general Franco afastado da órbita das potências do eixo,
18:18na medida em que isso era importante para Portugal, estabilizava a Península Ibérica,
18:23neutralizava a Península Ibérica e servia aos interesses estratégicos da Grã-Bretanha,
18:28uma potência com a qual Portugal tinha relações de grande proximidade.
18:32Portugal estava, de certa maneira, sujeito a uma espécie de tutela da Grã-Bretanha
18:36em termos internacionais e, portanto, era importante que a sua política face à Espanha
18:41servisse também os intentos de Londres.
18:44Salazar apenas visitou a Espanha por duas vezes para se encontrar com Franco.
18:49No entanto, o seu conhecimento das outras realidades políticas era bastante consistente.
18:56E, curiosamente, tinha uma maneira de trabalhar interessante, que era conversar com as pessoas,
19:07designadamente com pessoas que tivessem exercido grandes funções internacionais que visitavam,
19:13e guardava uma tal memória das conversas que as citava como quem cita livros.
19:19Essa experiência ele bebia, ele bebia essa experiência.
19:22Mas é claro que não é a mesma coisa de ter visto, de ter enfrentado pessoalmente.
19:32De pouco serviu ao país que o presidente do Conselho conhecesse de cor as palavras
19:37dos diferentes líderes políticos.
19:39O regime permanecerá inalterado durante mais 30 anos, com o apoio das potências ocidentais
19:45que cínicamente fechavam os olhos à violação dos direitos humanos declarados no pós-guerra.
19:50O nosso mais antigo aliado, e igualmente uma das mais antigas democracias,
19:55não hesitou em apoiar diplomaticamente Portugal.
19:58Outros países colaboraram ativamente com a PIDE.
20:02Nós estávamos absolutamente integrados e com todas as outras polícias do mundo.
20:05Olhe, várias vezes ia à Inglaterra, que às vezes me mandavam lá também para tratar de assuntos de troca de correspondência
20:10e de outros assuntos que não quero falar agora aqui.
20:14E era sempre bem recebido por eles.
20:17Por exemplo, também quando morreu Pompidou, o presidente Pompidou de França,
20:21lá foi o presidente Marcelo Caetano, convidado, enfim, pelas pessoas que fizeram as iséquias de Pompidou.
20:29E lá foi uma delegação da PIDE também acompanhar o seu presidente, um avião da Força Aérea.
20:34E quando chegámos a Orly, em França, imediatamente a polícia, afim, a SEDEC,
20:42vamos lá, homóloga lá, tomou conta da gente, tratou-nos muito bem e tal.
20:46É uma coisa que incidente às polícias, nós éramos uma polícia como qualquer outra.
20:50Os Estados Unidos acolheram várias vezes agentes da PIDE para receber a informação.
20:55Bem, eu lembro-me de um grande chefe da CIA que eu conheci pessoalmente, pessoalmente de vista, não é?
21:02O Alan Fossardol, se nem posso dizer exatamente qual é a data da criação da CIA.
21:06Mas devo dizer que houve colegas meus que frequentaram cursos na CIA já,
21:11como Central Intelligence Organization, colegas meus que o fizeram.
21:15O recurso às cutas, através de dispositivos eletrónicos, fazia parte da formação dos agentes
21:20que eram recrutados através das ordens de serviço nas fileiras das Forças Armadas Portuguesas.
21:26E então nessas ordens eram publicados convites para os jovens, para os mancebos que quisessem ingressar na PIDE.
21:32E só ingressavam na PIDE para o quadro policial, porque havia também o quadro administrativo,
21:37aqueles que tivessem cumprido um serviço militar exemplar, de preferência com louvores,
21:42e para além do serviço militar que tivessem um passado sem antecedentes criminais.
21:48Este ricor no recrutamento garantia a Salazar e à PIDE que os seus agentes eram tão competentes
21:55que eles próprios fariam a instrução do processo, deixando de fora advogados e juízes.
22:00O alto de interrogatório de Hermínio da Palma Inácio explicita que lhe foi recusada a assistência
22:06por haver inconveniente para a investigação. Todos os argumentos eram válidos para incriminar.
22:12E na agenda havia uma palavra que dizia MPB, ali numa altura, MPB.
22:20E eles basearam-se na acusação. Há, por exemplo, 6 meses de preventiva.
22:26Mas ao fim, em 9 meses foi julgado. E nessas letras, MPB dizia meu partido bolchevique.
22:33Percebem? Numa agenda. E aquelas 6 letras significavam meu primeiro beijo.
22:41Está a perceber?
22:43A primeira vez que eu fui preso foi porque fui a um concerto dado por Lopes Graça,
22:49que era uma figura da oposição bem conhecida, na casa de Valentejo.
22:54E no final houve uma desordem, porque houve uns tipos da direita que começaram a dizer
22:58que aquilo era tudo comunistas, não sei o que, não sei o que.
23:01Houve um goveião mais ou menos envolvido por a casa de Valentejo.
23:05E saímos ali naquela rua, perto do Coliseu, e depois veio a polícia, mas a polícia cívica.
23:15E eu fui preso. Não sei porquê, mas fui preso.
23:19E ainda nem sequer tinha a maior agrade, tinha aí 17 ou 18 anos.
23:25Eu fui preso pelo chamado movimento de beijo, o assalto ao cartel de beijo,
23:30mas o movimento de beijo, há quem chama o assalto ao cartel, não é o assalto ao cartel,
23:33foi o movimento de beijo, o movimento de oficiais, que fracassou por razões várias.
23:40E cinco dias depois do acontecimento, fui preso.
23:49E creio que foi derivado ao dia 5 de outubro de 1958, eu ter dado um abraço ao general Humberto Delgado,
24:00que apareci lá eu, mais um outro camarada, fardado à carrinja,
24:06e interrompi a fileira que ele trazia uma segurança, e eu furei a segurança e dei um abraço.
24:13Senhor general, a carrinja está presente.
24:15Houve pessoas lá, os tipos de segurança não ficaram a ser muita coisa,
24:19e o próprio general disse, deixem lá dar um abraço ao homem e tal.
24:24E eu depois havia lá bufos de carrinja, que por força eu tinha que ser comunista,
24:32mas não era comunista, eu não era comunista.
24:36Ele tinha um conjunto de livros para levantar na alfândega,
24:41e na altura tinham-lhe alerta para ele não ir levantar,
24:46porque tinha tido uma denúncia e a PIT estaria lá em cima se ele fosse levantar os livros,
24:54como teimou-se que era, e era algo que ele queria levantar.
25:00Ele foi à alfândega e automaticamente ficou detido.
25:06O nosso transporte era a bicicleta-pedal, e então eles tinham uma arlia à bicicleta-pedal,
25:12se fosse encontrado um homem qualquer aí a pedalar, ele o levava no louco preso.
25:18Eu fui preso várias vezes.
25:21A primeira vez por ter assinado o Programa para a Democratização da República.
25:26Foi uma prisão muito rápida, quer dizer, foi mais uma detenção do que uma prisão.
25:34Eu fui buscar a casa e fizeram umas fotografias da praxe, três de frente, três de perfil.
25:39Fui interrogado pelo Inspetor Abílio Pires, não fui maltratado.
25:46Ele queria saber em que reuniões eu tinha participado.
25:50Eu disse-lhe que não tinha participado em nenhuma reunião, para não denunciar ninguém.
25:56Onde é que apenas tinha assinado o documento?
25:59Perguntou-me onde. Eu disse-lhe que na Brasileira do Chiado.
26:02E então perguntou-me quem me tinha dado a assinar.
26:05Eu disse que não me lembrava.
26:08Ele ainda me perguntou se eu queria ficar lá a escrever as memórias do cárcere,
26:13como Camilo Castelo Branco, qualquer coisa assim deste género.
26:16Talvez porque eu trazia já uma malinha preparada e, no fundo, saí nesse mesmo dia.
26:22Os detidos eram então sujeitos a interrogatório, que nem sempre seguia com a normalidade.
26:27Nós não éramos uma organização de caridade e não há nenhuma polícia do mundo
26:31em que não se dê uns tabefos de vez em quando a quem a gente acha que precisa.
26:36Os testemunhos de maus-tratos apresentados pelos ex-presos políticos
26:40referem sempre a tortura do sono e da estátua infligidos durante longas horas ou mesmo dias consecutivos.
26:46Levaram-me para a PIDE, onde estive em estátua.
26:49Quero dizer, onde estive três dias e três horas, só a dizer onde é que está o Doutor Petite Santos.
26:55Você sabe, nós sabemos que você sabe, diga-nos onde é que ele está.
26:59Ele estive durante três, quatro horas, depois três dias e quatro noites
27:05e quando eu percebi que já estava sem força e que já estava completamente desesperado,
27:13com as pernas inchadas, com a barba de três dias e tudo aquilo,
27:17estas coisas que acontecem a um cidadão que está sem dormir e que não lhe deixam dormir,
27:22não lhe batem, mas também não lhe deixam dormir e com o foco direto em cima dos olhos,
27:28bem, é uma situação de grande tensão.
27:34Eu recordo-me quando eu fui para lá, para o interrogatório, numa manhã de carnaval,
27:42na segunda-feira de carnaval deste ano, parece-me que era dia 13 ou algo assim parecida,
27:48e estive a interrogatórios até sábado desta semana, recordo-me desde aí.
27:55Fui sujeito às torturas do sono, durante esse período não me foi permitido dormir.
28:01Em 1963 voltei a ser preso e encarcerado no Aljube.
28:06Aí tive interrogatórios de dia e de noite e durante vários dias estive preso em condições muito mais,
28:15num curro que era pouco mais comprido do que o meu corpo,
28:19tinha uma largura como de um ombro até à ponta do outro braço esticado,
28:26não havia cama, havia apenas uma tábua que se prendia,
28:30chamava-se o bailique, na parede onde havia um prego e que a sentava num tripé.
28:38A tortura do sono é uma tortura terrível.
28:41As pessoas não só perdem, perde-se a consciência e vêem-se imagens,
28:49vêem-se imagens que não existem, mas que, por exemplo, um pequeno sinal numa parede
28:54pode-nos refletir no nosso cérebro, um animal terrível.
28:59Quando nós estamos a sonhar, estamos a ver uma sequência qualquer fantástica
29:04e a acreditar que essa sequência é verdadeira, quando obviamente é uma imaginação nossa.
29:09E, portanto, isso é um mecanismo alucinatório.
29:12Ora, quando há uma privação de sono, como eu já disse,
29:15há sempre uma maior tendência a ter sono REM
29:18e o sono REM vai se misturar e tornar-se um intruso na vigília.
29:23E, portanto, essa intrusão do REM na vigília dessas pessoas que não estão muito vigis
29:29vai favorecer os mecanismos alucinatórios e a produção de alucinações
29:37que são semelhantes aos sonhos do sono REM.
29:41Mas a tortura do sono terá consequências a prazo.
29:45Nem todos os presos eram torturados da igual forma.
29:48A PIDE distinguia o estrato social dos prisioneiros.
29:51Quer dizer, os camponeses eram os mais torturados e começavam a levar pancada desde logo.
29:57Caçava um homem aí, em certa altura, como quem caça um coelho.
30:01Houve outros que, os operários, também eram torturados bastante, bastante, com violência.
30:10Me começaram a violentar, então, fisicamente, com um cassetete de borracha,
30:18começaram-me a bater nas mãos, nos braços,
30:21e deve-me ter dado alguma pancada, ou mesmo se calhar nem um pancado a nenhum momento,
30:27eu perdi a consciência.
30:30Os comunistas eram torturados,
30:33mas também dependiam um bocado da classe social e até do renome.
30:37As mulheres eram igualmente sujeitas às torturas da estátua e do sono,
30:41complementadas com situações de humilhação.
30:46E estavam lá duas mulheres polícias, enormes, gordas, grandes,
30:53e dissem, olha, estas senhoras são palpadeiras do Reduto Norte,
30:56que era o Reduto Norte, eram de preços comuns também,
31:00que as filhas eram dos preços comuns.
31:04Então, aqui há estas senhoras que são palpadeiras
31:06e querem que esta senhora se dispa e veja os seus orifícios naturais.
31:12Tudo era violado. A correspondência também não escapava.
31:16Nos interrogatórios que me fizeram,
31:19eu dei-me conta de que tinham violado muita da minha correspondência.
31:24E até particulares, tudo. Até cartas de amores.
31:29E nós abríamos a coisa muito simplesmente, agarrávamos num envelope,
31:33se eu tivesse um envelope, até era engraçado.
31:40Mas se o subscrito for aberto assim,
31:45e assim,
31:48e depois se puxar esta parte por aqui,
31:51e se nós sacarmos o conteúdo por aqui,
31:54e voltarmos a meter com muito jeitinho,
31:59ninguém vê, ninguém dá por isso.
32:03Em defesos, aos presos políticos pouco mais restava
32:06do que se sujeitarem às vontades da PIDA.
32:09Alguns familiares dos presos chegaram a pedir apoio
32:12ao grupo de deputados da Assembleia Nacional,
32:14conhecido como Ala Liberal.
32:16Essas intervenções foram motivadas pelo facto de,
32:20com muita dificuldade, com muitos empecilhos,
32:25termos conseguido visitar presos políticos em Caxias.
32:30Falámos com pessoas, começámos por avisá-las
32:33de que a conversa estaria certamente a ser gravada,
32:36e houve casos que nos foram ali relatados de agressão,
32:40de pessoas que tinham marcas nos joelhos, nas costas, etc.,
32:44e também de pessoas que tinham direito à liberdade condicional
32:49e que não estavam a dar a liberdade condicional, etc., etc., etc.
32:54E, portanto, essas intervenções resultaram de virmos transmitir
33:00à nação, através da Assembleia Nacional,
33:03aquilo que tínhamos encontrado,
33:06e de nos insurgirmos contra a existência de prisioneiros políticos.
33:10Aliás, isso fazia parte integrante e era prioritário
33:15na luta pelas liberdades.
33:17Eu já escrevi sobre pides, com uma grande parte de imaginação,
33:21mas também com a noção de que fiquei com a ideia
33:25de que alguns deles eram seres humanos que, pouco a pouco,
33:29se iam endurecendo e se iam tornando carrascos.
33:37Conheci um que me disse, Salvador, num interrogatório,
33:42que tinha sido seminarista
33:48e que, ao voltar da guerra, estava desempregado e tinha ido para a pide.
33:52Pode estar-me à traiçoeira, estar a misturar duas coisas, mas creio que não.
33:55Não quero dizer o nome dele porque pode não ser exatamente assim,
33:58mas foi um que não me chateou, que apenas me ouviu
34:04e fez um alto em que eu negava tudo.
34:07Porque nos atribuem barbaridades, violências e outras coisas.
34:11Não seríamos uma organização de caridade.
34:14Vi alguns péssimos, violentos, horrendos.
34:22Os julgamentos no Tribunal Plenário eram sempre muito concorridos.
34:26No entanto, os lugares livres da sala de audiências
34:29eram preenchidos pelos próprios agentes da pide.
34:32Para os advogados dos réus, a defesa era difícil.
34:37As pessoas eram presas.
34:38Ao princípio eram presas sem nada, sem sequer nenhum documento.
34:44Eram agarradas, ou nos escritórios, ou nas ruas, ou nas casas em que entravam
34:50e eram levadas brutalmente para a pide.
34:52É claro que as famílias começaram a criar redes de solidariedade.
34:58Iam ter com advogados.
35:00Com os advogados que pareciam advogados da oposição
35:04e que tinham a coragem de aceitar uma convenção dessas,
35:08que ainda por cima não era paga,
35:10porque a regra sempre dos advogados portugueses, honrares seja,
35:14é que nunca levaram um testão preso político.
35:17Além disso, os tribunais plenários
35:19confrontavam-se com processos instruídos pela pide,
35:24cuja instrução normalmente se limitava às declarações extorquidas aos réus
35:33e que depois, no final do processo,
35:36eram confirmadas, através de um auto-expressamento feito por isso,
35:41por dois agentes da pide que declaravam falsamente
35:44que tinham assistido aos interrogatórios
35:46e que aquelas declarações que constavam no processo correspondiam à verdade.
35:53A verdade das declarações dos réus.
35:56Eu não estava afiliada a nenhum partido político
36:00e fui condenada como dirigente do Partido Comunista,
36:03sem provas nenhumas.
36:09Portanto, como ia dizer, o juiz, como disse sempre,
36:12em terminal, me condenava por convicção.
36:18Isauro Coelho, enfermeira de profissão,
36:20foi presa porque pretendeu casar.
36:22Como noutras profissões,
36:24a ditadura não reconhecia-se direito às enfermeiras.
36:28A enfermeira Isaura encapsou uma baixa assinada
36:31em que se pretendia alterar a lei.
36:33Pagou com quatro anos de prisão
36:35a vontade de se afirmar contra uma injustiça,
36:38enquanto que no país dos brancos costumes
36:40outras enfermeiras escondiam o seu estado civil
36:43e até a constituição da sua família.
36:46Havia até lá uma enfermeira
36:48que era muito dedicada a um sobrinho.
36:53Portanto, a sobrinha estava em casa,
36:57falava muito do sobrinho
36:59e mais tarde ia saber que era filha dela,
37:02mas ela dizia que eram sobrinhos
37:04para não ser despedida.
37:06Durante o julgamento, os réus aproveitavam
37:09para denunciar os maus-tratos recebidos
37:11durante a fase de interrogatório.
37:14Mas os juízes insistiam em ignorar essas situações
37:17e muitas vezes agravavam as penas
37:19por desobediência ao tribunal plenário.
37:22Por exemplo, o Otávio Pato, que eu fui advogado,
37:25que esteve 16 dias salvo erro de estatua,
37:28e que teve uma síncope e ia morrendo,
37:31e que se portou como um herói.
37:34Realmente, o Otávio Pato foi espancado,
37:37brutalmente espancado.
37:39Isso eu não tenho dúvidas.
37:41E depois, no tribunal,
37:43quando ele estava a dizer aos juízes
37:45que tinha sido expulso, tinha sido espancado,
37:48os juízes mandaram-no calar
37:50porque isso não tinha potência para o caso.
37:53E ele continuou a falar,
37:55e eu também,
37:57a interromper os juízes a dizer que tinham que o ouvir,
38:00e de repente eles mandam,
38:02obrigam-no a sair,
38:04e dizem à polícia,
38:06à polícia pede,
38:08levem este homem para o calabouço.
38:10E à bruta, esses tipos entraram
38:12dentro da teia do tribunal plenário,
38:15eu assistia isso aos berros contra,
38:17e os tipos à força,
38:19e dando-lhe pancada,
38:21levaram-no e arrastaram-no
38:23para a cadeia de novo.
38:25E ele portou-se sempre de uma maneira exemplar.
38:27Os reis eram inibidos
38:29de se pronunciarem
38:31sobre os tratamentos
38:33a que tinham sido submetidos
38:35nos interrogatórios,
38:37no tempo em que estiveram detidos,
38:41e apenas tinham, no fundo,
38:43de se pronunciarem
38:45sobre se confessavam ou não
38:47a pertencer ao Partido Comunista Português.
38:49A recusa nestas afirmações
38:51era considerada pelos tribunais plenários
38:53como uma agravante.
38:55Éramos 11, creio eu,
38:57éramos 11 da Carris,
38:59fomos todos julgados no mesmo dia.
39:01O único que falou para o juiz
39:03fui eu.
39:05O único, os outros não.
39:07Mas eu falei com o juiz
39:09para o rebaixar.
39:11Sinceramente, eu não quero ser
39:13mais de ninguém, mas foi com esta intenção.
39:15Porque o juiz,
39:17o senhor Caldeira,
39:19quando um tipo dizia
39:21qualquer coisa, ele dizia
39:23não é isso, o senhor só diz
39:25sim ou não.
39:27Bom, as dificuldades
39:29eram o resultado disto,
39:31nós sabíamos que íamos colaborar
39:33numa farsa.
39:35Nós sabíamos que íamos colaborar numa farsa
39:37e íamos, digamos assim,
39:39viver momentos difíceis
39:41na nossa profissão
39:43porque estávamos,
39:45tínhamos o sentimento
39:47de que
39:49os nossos esforços eram inúteis
39:51porque o Tribunal
39:53estava determinado a seguir
39:55a acusação
39:57apresentada pela Polícia Política.
40:01O trabalho desenvolvido pelos advogados
40:03era permanentemente posto em causa.
40:05E, portanto,
40:07achei que devia
40:09apresentar um hábio aos corpos.
40:11De maneira que isso teve
40:13consequências pessoais porque
40:15nesse tempo era um ministro
40:17muito poderoso
40:19e eu fui preso
40:21e durou algum tempo
40:23essa prisão.
40:25Nós não só assistíamos à humilhação
40:27dos réus,
40:29pessoas normalmente honestas, com uma vida limpa,
40:31como
40:33à humilhação dos próprios advogados
40:35e ficávamos
40:37normalmente frustrados
40:39com a circunstância
40:41de ver os nossos clientes
40:43recolherem à cadeia
40:45sem
40:47que sentíssemos que estivesse a fazer
40:49ali o mínimo, digamos assim, de justiça.
40:51O tempo de prisão
40:53aplicado pelos juízes não era respeitado
40:55pela PIDE, que mantinha os presos
40:57políticos em cativeiro, mesmo após
40:59o cumprimento da pena aplicada.
41:01Estive lá, portanto,
41:0332 meses,
41:0533 ou 34,
41:07não me recordo, 33 meses,
41:09mas fui condenado
41:11só a 24 meses de prisão,
41:1322 meses de prisão.
41:15Fui condenado a 2 anos e 3 meses
41:17em medidas de segurança.
41:19Isto
41:21parece
41:23um paradoxo, parece que está bem
41:25dito paradoxo, mas
41:27é correspondente
41:29à prisão perpétua
41:31porque é o seguinte,
41:33é que eu fui condenado
41:35a 2 anos e 3 meses em medidas
41:37de segurança perrugáveis.
41:39Quando é assim,
41:41nós só somos
41:43soltos quando eles
41:45entenderem. Foi o que aconteceu,
41:47por exemplo, ao Chico Miguel,
41:49fugiu comigo,
41:51que condenados a 3 anos e meio,
41:53já lá estava há 23.
41:55Apesar das fortes
41:57medidas de segurança que rodeavam
41:59os presos, ao longo da ditadura
42:01foram ensaiadas variadas tentativas
42:03de fuga e muitas foram concretizadas
42:05com êxito. Corria
42:07o ano de 1961
42:09e na prisão de Caxias um grupo de
42:11oito presos efetuou uma espetacular evasão
42:13utilizando um carro blindado
42:15de Salazar que se encontrava no interior
42:17do estabelecimento prisional para manutenção.
42:19Os gajos começaram logo a
42:21candidir o carro lá a chegar,
42:23os próprios prisioneiros,
42:25isto está rachado, para que isto
42:27que eles andavam a jogar a bola
42:29com a mão, atiravam com a bola
42:31de um lado para os outros.
42:33Eu parei o carro, o magro
42:35chegou-se ao pé de mim, logo com aquela coisa,
42:37o gajo com aquela calma
42:39que é necessário ter
42:41e eu só tive tempo foi-lhe dizer assim
42:43mas finalmente queres fugir ou não queres fugir?
42:45E quando eu disse esta palavra
42:47ele, golo,
42:49quando ele disse golo,
42:51ora,
42:53nem meio segundo
42:55me trolou com tudo.
42:57Estava um guarda,
42:59começamos a fazer assim,
43:01o gajo cozeu-se com a parede,
43:03quando ele caiu e se levantou
43:05para tirar da espingarda,
43:07para dar tudo de alarme,
43:09já eu tinha passado o túnel,
43:11já estava assim cá fora.
43:13Ora,
43:15eu tive bem cuidado,
43:17estava com medo,
43:19era que havessem crianças do lado fora do portão
43:21quando um dia
43:23apitei, bati-lhe a primeira,
43:25oh menino, aquilo foi como nada,
43:27não se notou nada,
43:29foi tudo à frente,
43:31até caíram os pilares.
43:33Os pilares que sustentavam o regime tinham sido
43:35abalados três anos antes pela candidatura
43:37de Humberto Delgado à presidência da República.
43:39Apesar das constantes
43:41fraudes eleitorais, a candidatura
43:43mobilizou um forte apoio popular
43:45e de toda a oposição democrática,
43:47assinalando que o regime estaria a chegar ao fim.
43:49E tudo mudou, logo,
43:51mal ele entrou em cena,
43:53porque ele prometeu
43:55solenemente aos portugueses que iria
43:57até às urnas, o que nunca tinha
43:59acontecido. Os candidatos da oposição
44:01desistiam a meio do caminho,
44:03as condições eram tão más
44:05que eles diziam que não tinham possibilidade
44:07de ir às urnas. Mas Humberto
44:09Delgado disse que acontecesse
44:11o que acontecesse, eu irei,
44:13aconteça o que acontecer, eu irei até ao fim.
44:15Portanto, eu prometo aos portugueses
44:17que irei às urnas.
44:19Só isso espevitou o povo
44:21e as pessoas ficaram a perceber
44:23logo que algo novo estava a passar em Portugal,
44:25com essa palavra, com essa promessa.
44:27Portanto, ia-se tirar
44:29a limpo, finalmente, pela primeira vez,
44:31se havia fraude, se não havia fraude,
44:33e só isso já era muito.
44:35Mas o general Humberto Delgado foi mais longe.
44:37Na conferência de imprensa do Café-Chave
44:39de Ouro, Delgado tornou
44:41claras as suas intenções quanto a Salazar.
44:43Demitiu o Ia se fosse eleito.
44:45Isso foi
44:47uma bomba em Portugal, porque ninguém,
44:49ninguém tinha a coragem
44:51de dizer mal de Salazar
44:53e de o enfrentar
44:55diretamente, porque
44:57Salazar tinha uma auréola
44:59de salvador da pátria desde há 30 anos.
45:01As eleições realizaram-se
45:03com resultados inesperados.
45:05O candidato do regime, Américo Tomás,
45:07recebe 75,8%
45:09e Humberto Delgado é estornudosamente derrotado
45:11com 23,6% dos votos.
45:13A fraude
45:15repetia-se uma vez mais.
45:17Portanto, a contagem dos votos
45:19foi feita à porta fechada
45:21só com elementos afetos
45:23à situação, como se dizia
45:25naquele tempo. E obviamente
45:27que não é preciso ir mais longe, com isso
45:29está tudo dito, mas até mesmo
45:31documentalmente a fraude está
45:33comprovada, porque existem
45:35documentos em que
45:37se informam, digamos,
45:39as autoridades centrais
45:41são informadas dos resultados, mas
45:43depois, com um pequeno aparte, na realidade
45:45o que aconteceu foi, então era o contrário,
45:47os números eram ao contrário
45:49daqueles que foram oficialmente dados.
45:51Se as eleições de 58 deixaram
45:53marcas profundas no regime,
45:55externamente a pressão das Nações Unidas
45:57para o fim da política colonial aumentava.
45:59Porque as Nações Unidas entendiam
46:01que Portugal devia
46:03apresentar a
46:05comunicação dessa
46:07situação colonial
46:09e que ela ficaria
46:11submissa
46:13aos procedimentos que estavam
46:15na carta das Nações Unidas.
46:17Portugal dizia
46:19que quando se tinha candidatado
46:21as Nações Unidas
46:23ficaram a saber que, de acordo com a
46:25Constituição portuguesa,
46:27não eram consideradas colónias.
46:29Em 61, com o começo
46:31da guerra
46:33em Angola,
46:35e depois se comunicou à Guiné
46:37e depois a Moçambique, com três fentes de luta,
46:39se tornou numa situação
46:41insustentável,
46:43muito atacado pelos próprios aliados da NATO
46:45e, portanto,
46:47o regime entrou em queda.
46:49A juventude vai ter um maior
46:51protagonismo na oposição ao regime,
46:53abrindo desde então, e até 1974,
46:55uma forte crise académica
46:57reprimida com brutalidade.
46:59Entretanto,
47:01entra disfarçado em Portugal
47:03para assumir a liderança do golpe de Berja,
47:05o General Sem Medo.
47:07A guerra se sente-se ameaçada
47:09e a PIDE decide a Operação Otono
47:11que eliminará Humberto Delgado em Badajoz.
47:13O objetivo não era matar
47:15para transformá-lo num mártir da liberdade,
47:17era matá-lo para que se tornasse
47:19um mistério o seu desaparecimento
47:21e as pessoas acabassem por esquecer
47:23Humberto Delgado. Esse era um grande
47:25objetivo, porque ele era um símbolo
47:27e, portanto, se ele morresse
47:29e as pessoas soubessem,
47:31seria um problema muito grande,
47:33como veio a ser.
47:35Além disso,
47:37o General tinha uma secretária,
47:39com quem viajou,
47:41era Jair Moreira Campos,
47:43que ficou no hotel Simancas,
47:45onde eles pernoitaram,
47:47e que eles,
47:49como sabiam que ela
47:51daria o alarme para todo o mundo
47:53se ele tivesse desaparecido em Badajoz,
47:55foram ao hotel
47:57e estrangularam-na a frio,
48:01e depois depositaram-na
48:03ao menos perto de onde ele estava.
48:07Com a morte de Salazar e a posse formal
48:09de Marcelo Caetano, a PIDE
48:11é substituída pela Direção-Geral da Segurança.
48:13Verdadeiramente não houve alteração
48:15nenhuma na PIDE,
48:17nas nossas atribuições,
48:19nas nossas funções.
48:21Houve uma alteração no nome,
48:23passou a ser Direção-Geral de Segurança.
48:25E passou a ser Direção-Geral de Segurança
48:27porque Polícia Internacional
48:29de Defesa do Estado,
48:31a Polícia Internacional dava um aspecto
48:33talvez megalómono,
48:35uma polícia que controlava todo o mundo.
48:37A nossa função não era essa.
48:39A queda do Salazar,
48:41a substituição do Salazar,
48:43e depois o Marcelo Caetano quis tentar
48:45uma liberalização que não conseguiu fazer
48:47e que foi realmente
48:49um regime idêntico
48:51ao do Salazar,
48:53embora lhe chamasse outras coisas.
48:55A PIDE deixou de ser PIDE para passar
48:57a ser Polícia não sei de quê.
48:59A União Nacional passou a ser
49:01a Ação Nacional Popular.
49:03A censura passou a ser Exame Prévio.
49:05Coisas desse género,
49:07de mera fachada,
49:09sem nenhum conteúdo efetivo.
49:11A atividade da PIDE-DGS
49:13manteve-se até à tarde de 25 de Abril de 1974.
49:17Conhecedora das intenções
49:19dos oficiais das Forças Armadas,
49:21pouco podia fazer por um regime
49:23que agonizava há demasiado tempo.
49:25Nós sabíamos a par e passo
49:27e, no fundo,
49:29houve primeiro
49:31um 16 de Março.
49:33O 16 de Março foi uma espécie
49:35de um balão de ensaio,
49:37ver o que é que aquilo dava.
49:39O castigo que os militares tiveram
49:41não foi praticamente nenhum.
49:43Eles verificaram que havia fraqueza
49:45da nossa parte e da parte do Estado Novo.
49:47Era um governo de pessoas velhas.
49:49O Marcelo Caetano
49:51não tinha o carisma
49:53de Salazar.
49:55Havia já um bocado,
49:57havia bastante, até.
49:59As próprias Forças Armadas já não estavam
50:01disciplinadas como estavam anteriormente.
50:03O trabalho de sapa, de corrosão,
50:05que o nosso inimigo fazia,
50:07tecnicamente
50:09bem feito.
50:11Aquilo nós podíamos ter abortado
50:13ao 25 de Abril,
50:15mas acontecia mais tarde.
50:17O regime estava cansado,
50:19estava minado.
50:21A PIDE, criada por Salazar,
50:23reprimiu as ideias democráticas,
50:25violou os direitos fundamentais,
50:27deixou uma marca de medo
50:29e de desconfiança na população portuguesa
50:31durante várias gerações.
50:33Com as escutas telefónicas,
50:35com os informadores que intimidavam o convívio
50:37livre e espontâneo dos portugueses,
50:39com a tormenta das torturas da estátua
50:41do sono, com os chaneamentos profissionais
50:43ou as deportações,
50:45com as dezenas de milhares de fichas
50:47encontradas na sede da Rua António Maria Cardoso
50:49e correspondentes a 6 milhões
50:51de entradas, hoje disponíveis
50:53no Arquivo Nacional da Torre do Tombo,
50:55com tudo aquilo,
50:57a PIDE ajudou Salazar a despolitizar
50:59e desmobilizar a participação cívica
51:01na sociedade portuguesa,
51:03mantendo nesta,
51:05ecosíticas, muitos anos após
51:07a sua extinção.
51:21A PIDE ajudou Salazar a despolitizar
51:23e desmobilizar a participação cívica
51:25na sociedade portuguesa,
51:27mantendo nesta,
51:29ecosíticas, muitos anos após
51:31a sua extinção.
51:33A PIDE ajudou Salazar a despolitizar
51:35e desmobilizar a participação cívica
51:37na sociedade portuguesa,
51:39mantendo nesta,
51:41ecosíticas, muitos anos após
51:43a sua extinção.
51:51Canta-se a gente
51:53que a si mesma se descobre
51:55e acorda
51:57vozes arraiais.
51:59Canta-se a gente
52:01que a si mesma se descobre
52:03e acorda vozes arraiais.
52:05Canta-se a terra
52:07que a si mesma se devolve
52:09que o canto assim nunca é demais.
52:17Em cada veia
52:19o sangue espera a vez.
52:23Em cada fala
52:25se persegue o dia.
52:27E assim se aprendem
52:29as marés.
52:31Assim se cresce e ganha pé.
52:33Rompa a canção
52:35que não havia.
52:37Acordem
52:39luzes nos ombrais
52:41que a tarde cega.
52:43Acordem vozes
52:45arraiais.
52:47Cantem
52:49despertos na manhã
52:51que a noite entrega
52:53que o canto assim nunca
52:55é demais.
52:57Cantem
52:59marés por essas praias
53:01de sargaços.
53:03Acordem vozes
53:05arraiais.
53:07Corram
53:09descalços rentaucais.
53:11Abram abraços
53:13que o canto assim nunca
53:15é demais.