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Em “Uma Delicada Coleção de Ausências”, a escritora Aline Bei usa o presente contínuo e a narração em terceira pessoa para contar as histórias de abandono de quatro mulheres de gerações diferentes, de uma mesma família.
Transcrição
00:00Música
00:00Laura passa a toalha entre os dedos do pé.
00:17As covinhas nas costas são as mesmas de glória, Margarida pensa.
00:21E a menina pergunta, coçando os olhos, que horas são?
00:24Quando deixa um banheiro, Laura pisa lentamente um passo depois do outro,
00:30para mostrar o quanto isso a torna, não sei, com sorte, especial.
00:36Entram no quarto.
00:38Com a toalha na boca, Laura espera a avó-lhe estender o mundo do modo como ela o conhecia.
00:43E, no mesmo gesto, por cima do gesto pelos anos, Margarida lhe entrega o pijama.
00:49Ao ver a cabeça de Laura no fundo do tecido, aperta aquele corpinho contra o dela.
00:55Raspa uma sombra no travesseiro, um luco qualquer no tecido,
01:00para em seguida ajeitar o lençol.
01:02E Laura se deita na cama que divide com a avó.
01:05Com Deus me deito, com Deus me levanto.
01:08Com a graça de Deus e do Divino Espírito Santo. Amém.
01:13Quando eu comecei o projeto desse livro, ele teve, acho que, três entradas principais.
01:19Um primeiro momento foi uma viagem que eu estava fazendo para Buenos Aires, em 2019.
01:26E lá eu vi uma mulher.
01:28Ela era uma mulher que estava numa praça, que eu cruzei por acaso.
01:32E ela tinha uma placa do lado escrito Leia Humanos.
01:36E essa mulher captou a minha imaginação.
01:39Eu até tirei uma foto e, de certa forma, Margarida nasceu nessa imagem, dessa mulher.
01:44Uma outra ponta foi quando eu estava escrevendo justamente a pequena coreografia do Adeus.
01:50E num dado momento a Gila Terra, que é a protagonista, ela tem uma reflexão sobre a avó dela.
01:55Ela diz que é uma pena que a maioria das nossas avós vão embora
01:59antes de virarmos pessoas que sabem aproveitar uma conversa.
02:03Me revelou também parte dessa história que eu trabalharia ao longo dos anos, mais à frente,
02:09que é a história de uma avó e de uma neta.
02:12E uma outra ponta importante para fechar esses inícios de abandonos e assuntos do livro,
02:19a minha professora, numa aula de escrita, me pediu, pediu para nós, como turma,
02:24escrever uma história num presente contínuo.
02:26E quando ela pediu isso, eu que sempre escrevi no passado, com verbos no passado,
02:32de repente vi a minha narrativa crescer de um ponto do presente.
02:36E a Filipa, que é a personagem da bisavó, nasceu nessa ponta,
02:40porque no final é quase como se fosse uma linha, né?
02:42Com vários personagens de gerações diferentes de uma mesma família
02:46abordando e construindo esse presente, passado, futuro.
02:50Antes de deslizar para o sono, Laura vislumbra uma nudez luminosa.
02:59Vó, ela chama, parece que irá esquecê-la no momento em que Margarida deixar o quarto.
03:07Laura ainda não sabe que se tornará, cada vez mais,
03:10um corpo que atravessa a porta em direção a seu próprio desaparecimento.
03:14Um corpo que, à luz das atividades do dia, será maturado e completo,
03:19e por isso muito mais visível que o dela de criança,
03:22com veios e amplitudes, pintas e a bunda perturbadoramente plana.
03:28Mas eram os seios o seu maior assombro.
03:31Ter seios mudaria tudo.
03:33Vó, Laura ainda chama,
03:36e escuta, lá do fundo o aquoso do que já é um sonho.
03:41Dorme, querida.
03:44Tem uma mulher que não está, que é uma grande ausência, que é a Glória.
03:48A Glória é mãe de Laura, filha de Margarida,
03:51neta de Filipa.
03:53Então, são mulheres que, cada uma ao seu tempo,
03:57estão lidando com as suas individualidades
04:00e também com uma questão mais misteriosa,
04:03de uma ordem existencial,
04:06mas também política, estrutural.
04:08O fato de elas serem mulheres
04:09molda a angústia que, de certo modo,
04:12ela sente cada uma ao seu tempo,
04:14que passa também por essas questões
04:17de apagamento de desejo,
04:19de dificuldade de lidar com segredos, silêncios,
04:24questões que vão sendo elaboradas no fundo do livro,
04:28na parte de baixo do texto,
04:30e conforme a narrativa vai crescendo,
04:32a gente vai entrando em contato com esse segredo,
04:35com esse rio que corre por baixo da escrita.
04:37Para mim era importante que essas mulheres estivessem juntas.
04:41Eu sempre escrevo a partir do tempo,
04:43atravessando o espaço e atravessando corpos femininos.
04:46Nos outros livros tenho saltos temporais.
04:48Nesse livro, como eu disse para vocês,
04:50queria trabalhar esse presente contínuo.
04:52Eu acho que esses corpos dessas mulheres
04:54é uma forma de saltar no tempo,
04:56tendo, por exemplo,
04:58nas duas pontas a neta e a bisavó,
05:00quase que se unindo nesse ciclo
05:02que se fecha e se inicia,
05:04numa mesma família.
05:05Agora que Filipe está ali,
05:08de certa forma,
05:09Margarida se arrepende
05:10de ter ficado tanto tempo sem vê-la.
05:13Poderia ter ido visitá-la,
05:15uma ou duas vezes por mês,
05:17e então, agora, teriam se visto
05:19sem se assustarem demais
05:21com as mudanças que notassem uma na outra.
05:23Mas foi Filipe a quem partiu
05:25quando Margarida mais precisava dela.
05:28E mesmo que tivessem se visto
05:29de que adiantaria,
05:31teriam ficado tão quietas
05:32quanto estão agora.
05:35Nunca estudei psicanálise frontalmente.
05:42Eu gosto de ler muita coisa sobre,
05:44leio Freud, Lacan.
05:46Muitas vezes não compreendo
05:48tudo o que eu estou lendo.
05:51Às vezes compreendo mal
05:52ou compreendo o meu modo.
05:54Mas ainda assim,
05:55tudo isso me ajuda a pensar
05:57essas partes,
05:58essas camadas subterrâneas do texto
06:00e das personagens.
06:01Eu venho do teatro,
06:03então a minha investigação
06:05é sempre a partir da personagem.
06:07E eu acho que as personagens,
06:08com essa metáfora da cebola,
06:11com muitas camadas
06:12que a gente vai acessando
06:13pelo gesto,
06:15pela fala,
06:17pelo encontro com objetos,
06:19tudo isso,
06:19acho que a psicanálise
06:20vai me dando,
06:21vai fermentando
06:22essas possibilidades estéticas
06:24e filosóficas.
06:25Eu gosto da primeira pessoa
06:27porque ela traz uma intimidade
06:29para o leitor e para a leitora,
06:31mas, por outro lado,
06:31a gente fica amarrado
06:32a um ponto de vista único
06:34da narrativa.
06:35E a Delicada, de repente,
06:36subitamente se impôs
06:38como uma necessidade
06:39de terceira pessoa
06:40por ter três vozes importantes
06:42dentro dessa narrativa
06:43e desejar também
06:45que essas vozes
06:45fossem observadas
06:46com uma certa distância.
06:48Então, o meu narrador,
06:50ele vai contando a história,
06:51ele observa essa história
06:53e vai descobrindo a história
06:54junto com a leitora e com o leitor
06:55e, às vezes,
06:56ele mergulha
06:57nos pensamentos
06:58dessas personagens,
07:00se mistura com elas
07:01e depois volta.
07:02Então, é um narrador
07:03bem silencioso,
07:05espero que ele
07:06proporcione
07:07uma sensação de intimidade
07:09como eu costumo gostar
07:10de trabalhar,
07:11mas, por outro lado,
07:12também traga
07:13uma espécie de
07:13um caleidoscópio
07:16de interpretações
07:17onde a gente não tem
07:18uma verdade única
07:19ou uma interpretação exclusiva,
07:21mas que essa história
07:22possa se desdobrar
07:23em muitas possibilidades
07:26imagéticas,
07:27enfim,
07:28era o meu desejo
07:29quando eu comecei a escrever.
07:32Margarida ainda não teve coragem
07:34de encarar a mãe,
07:36apenas a entrever,
07:37escuta o ar
07:38que sai de seus pulmões.
07:40Mesmo assim,
07:41percebeu que Filipe
07:42está mais magra,
07:43os bracinhos manchados
07:45por pintas de verão,
07:47mas os dedos
07:47seguem enormes,
07:49palmas das mãos grandes,
07:50que se frequentassem teatros,
07:53elas seriam um aplauso
07:54de dez em um.
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08:02Legenda Adriana Zanotto

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