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  • 13/07/2025
A escritora Giovana Madalosso fala de “Batida Só”, livro em que acompanha os caminhos de uma jornalista em busca de cura e fé.

Transcrição
00:00Música
00:00O Batida Só conta a história da Maria João, que é uma jornalista que descobre que tem uma arritmia bem grave no coração.
00:25E aí os médicos sugerem para ela um tratamento de três meses em que ela tente não sentir emoções fortes para não estimular essa membrana.
00:36Só que, imagina, viver sem sentir emoções fortes é um baita desafio, né?
00:40Ainda mais para uma jornalista que tem uma vida super estressante, um namorado problemático e um pai e uma mãe tão complicados que ela chama do meu casal de filhos.
00:51Então ela resolve se mandar para uma cidade do interior para ficar isoladona, ciente de antidepressivos para não sentir nada.
00:59Só que aparece por lá uma amiga de infância e essa amiga de infância tem um filho que também tem uma doença.
01:06E aí os três juntos acabam partindo numa jornada em busca da cura.
01:11E essa protagonista, que não queria sentir nada, nem se envolver com ninguém,
01:15Bom, ela acaba... não vou nem estragar agora.
01:22Eu fiquei olhando para ela.
01:25Nunca tinha experimentado nada parecido.
01:28Aquilo era amor.
01:29Não as coisas que eu tentava acreditar que eram amor.
01:33Pelo que eu estava vendo, amar era estar no outro.
01:37E ao que parecia, apesar das dores, era melhor do que apodrecer em si mesma.
01:41Eu estava escrevendo um outro livro que tratava de um outro assunto,
01:47mas eu fui atravessada na minha família pela doença de um familiar, de uma pessoa que eu amo muito.
01:54E a partir desse momento, vivendo essa peregrinação, primeiro de médicos e depois de lugares de cura alternativo,
02:03porque em algum momento até um médico falou, olha, se não está dando certo assim, tenta um médium.
02:11E também a minha busca de fé, porque eu não tinha fé nenhuma.
02:14Eu sempre fui ateia, desde os... com nove ou dez anos de idade.
02:19Minha família falou que eu tinha que fazer a primeira comunhão.
02:21E eu falei, não, não quero fazer a primeira comunhão porque eu não acredito em Deus.
02:24Eu fico até pensando tão pequena, né? Da onde?
02:27E desde então eu segui ateia.
02:29Mas quando eu fui confrontada com a doença de uma pessoa que eu amava muito,
02:34eu queria rezar e não sabia nem como eu fazia isso.
02:38Essa peregrinação toda foi o que serviu de base para eu escrever esse romance.
02:43E eu larguei o outro livro que eu estava escrevendo,
02:46porque tudo parecia irrelevante perto do que eu estava vivendo naquele momento.
02:50Eu acho que o medo define a trajetória dessa personagem.
02:53Eu acho que o medo já definiu a minha trajetória também, né?
02:57A gente acaba se colocando muito nos livros.
02:59E sim, eu acho que o contrário da vida não é a morte, é o medo.
03:05Porque quando a gente vê, inclusive, a história dessa personagem,
03:09o quanto ela perde de viver quando ela está com tanto medo de sentir emoções.
03:14É claro que ela está fazendo um tratamento e isso naquele momento é o recomendado para ela.
03:19Mas eu achei que isso também serviria como uma metáfora poderosa para o momento que a gente vive, né?
03:25Várias pessoas que não querem mais se envolver.
03:27Ah, não vou me apaixonar porque vai que dá tudo errado, né?
03:31Ou tem pessoas que já se relacionam com o Iá, né?
03:34Para não se machucar, para não se firir muito.
03:37Ou tem gente que toma muito mais antidepressivo do que precisa.
03:41Então, eu acho que quando a gente olha para a sociedade contemporânea,
03:44que, na minha opinião, está se protegendo demais da vida, é uma espécie de morte também, né?
03:51Então, esse medo de não sentir, o medo de não arriscar, o medo de se expor, o medo de viver,
03:57acaba trazendo para a gente uma espécie de uma morte em vida.
04:00Era para tudo aquilo ser triste.
04:05E, de certa forma, era.
04:08Aquele catálogo de corpos adoecidos, aquela fratura exposta da fragilidade humana.
04:13Mas tinha alguma coisa boa que captei e não soube elaborar até chegar ao caixa.
04:19Ali, atrás da funcionária de cabelos encebados que vendia as fichas, havia um cartaz.
04:25Mas, não deixem de viver.
04:27Assim, em caixa alta, como a gritar para os clientes.
04:31Então é isso, pensei, pegando a ficha e cruzando a pista até o bar.
04:36Enquanto muitos, até compreensivelmente, estavam entrevados em casa,
04:40aquela turma tinha escolhido viver.
04:42Com dor, com pino, com atadura, com prótese, com fezes.
04:47E aquilo era bonito.
04:48Tão bonito que me deu ainda mais vontade de me curar para seguir sofrendo a vida.
04:53Bom, o Nico surgiu nessa história porque tem uma parte dessa história
04:59que fala sobre o coração, sobre as emoções.
05:01Mas eu queria muito colocar nessa história a dor de uma mãe que tem um filho
05:05que tem alguma patologia, um filho que está doente.
05:08Eu percebi que eu queria tocar nesse assunto
05:09porque um dia eu estava subindo perto do Hospital das Clínicas em São Paulo
05:13e eu também tomo antidepressivo, com muitas pessoas, e choro menos do que deveria.
05:18E ao ver uma mãe arrumando o lenço na cabeça de uma menina
05:21que eu imagino que estava fazendo quimioterapia, eu comecei a chorar muito.
05:24E eu falei, nossa, eu preciso falar sobre isso.
05:26Se eu estou chorando é porque isso precisa ser dito.
05:29Falar sobre essa dor da mãe acompanhando o tratamento de um filho.
05:34Então o Nico entrou nessa história nesse lugar,
05:37para que eu pudesse colocar para fora isso,
05:40que era uma coisa que me tocava e que me incomodava tanto.
05:43Ele tem um linfoma e isso sim eu precisei pesquisar.
05:48Então eu fiz uma pesquisa de outro tipo.
05:50Eu sentei com o médico, encontrei um médico especialista nesse tipo de quadro
05:55e nós criamos juntos esse personagem.
05:58Eu nunca tinha feito isso antes.
05:59Fiquei conversando duas, três horas com o médico e a gente criou o Nico.
06:03E depois eu brincava no celular que eu tinha o médico do Nico.
06:06Minha filha até brincou uma ocasião que esse médico veio almoçar na minha casa
06:11e eu falei, o médico do Nico está chegando.
06:14E ela falou, puxa vida, até o personagem da minha mãe tem um médico e eu não tenho.
06:24O feminismo eu deixo muito para o meu trabalho nas colunas.
06:27Eu também sou colunista de jornal,
06:29para o meu movimento junto com as escritoras,
06:31para alavancar a escrita feita por mulheres.
06:33Mas eu não gosto de falar em literatura feminista
06:36porque a gente acaba colocando a literatura que a gente tem feito
06:41dentro de um outro gênero, como eu falo, de novo no cantinho da estante.
06:45E a literatura feita por mulheres, eu prefiro usar esse termo,
06:48é uma literatura universal.
06:50Eu sempre pensava, não, eu não coloco o feminismo na minha literatura,
06:54eu não quero fazer uma literatura panfletária,
06:56mas um dia eu escutei alguém falando dos meus livros
06:58e falando, por mais que ela não toque isso diretamente,
07:01o feminismo está entranhado nas histórias do romance.
07:04Isso talvez seja verdade, eu não consigo me dissociar totalmente
07:08daquilo que eu penso e acredito na hora de escrever ficção.
07:11Olha isso, disse logo depois.
07:14Me aproximei para ver o que ela apontava.
07:16Nico dormia de barriga para o teto, um braço solto acima da cabeça.
07:21O dedo da Sara indicava a axila do garoto, onde estava o caroço.
07:26Achei que era isso que ela queria me mostrar,
07:28mas ao me aproximar mais um pouco,
07:30graças à luz do abajur e à unha pontuda da minha amiga,
07:34percebi que o que ela queria me mostrar era outra coisa.
07:37O esmalte rosa pousava na raiz de um pelo,
07:40preto, liso, comprido, uma penugem primogênita na axila em berbe.
07:46Tocando o pelo e o caroço bem debaixo dele,
07:50me perguntou, como pode um corpo apontar ao mesmo tempo
07:54para a vida e para a morte?
07:55Tocando o pelo e o caroço bem debaixo dele,
08:08tchau, tchau, tchau.

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