A atriz Andréa Beltrão encena “Lady Tempestade”, peça com texto de Silvia Gomez e direção de Yara de Novaes, que conta a história da advogada Mércia Albuquerque, conhecida como a maior defensora de presos políticos do Nordeste.
Categoria
🦄
CriatividadeTranscrição
00:00As pessoas que contam histórias nem sempre contam histórias porque amam contar as histórias que contam.
00:18Às vezes as pessoas contam histórias porque precisam entender as histórias que contam.
00:23Elas precisam descobrir, decifrar as palavras riscadas, rasuradas, semidesaparecidas dentro de diários que precisarão ser queimados depois de lidos.
00:34Porque o passado, mesmo quando ele é bem guardado, bem conservado, com bolinhas de naves da Lina, aquelas bolinhas brancas que dão vontade de comer, passada cheia de fantasmas.
00:44Quando a gente começou a ensaiar essa peça, a gente partiu do diário da Mércia Albuquerque, que é essa advogada muito importante.
00:55Uma pernambucana que é conhecida como a maior defensora de presos políticos do Nordeste, advogada dos mil casos, enfim.
01:10Uma mulher impressionante pela vitalidade dela, pela paixão pela vida, pela juventude e ao mesmo tempo uma mulher que viveu nos calabouços, nos porões, resgatando pessoas feridas, mortas, torturadas, amputadas, mutiladas.
01:32Essa é a história. 29 de maio de 2025. Essa é a história de um certo diário que eu recebi numa certa madrugada de um certo R ponto. Eu vou chamar ele sempre assim, de R ponto. Eu serei a ponto.
01:49Esses diários, eles foram escritos nos anos de 1973 e 1974. Então, eles concentram essa experiência da Mércia nesses anos, que foram anos de muita violência, desaparecimentos, anos muito terríveis da ditadura.
02:04E, nesses anos, a Mércia fez esse diário um pouco para conseguir lidar com todas as violências que ela estava presenciando e com tudo que ela estava tendo que enfrentar.
02:14A Silvinha dizia assim, às vezes eu consigo ler assim, meia página e paro. E fico realmente afetada durante três dias para voltar a ler.
02:24E aí eu propus a Silvinha um exercício, como exercício, como provocação mesmo. Eu falei, Silvinha, por que que então você não começa a escrever um diário do diário?
02:33Ela criou, então, um encontro entre uma pessoa que recebe um diário e o diário. Essa leitura do diário. E eu acho que é nessa imbricação que o espetáculo acontece.
02:48Essa relação mesmo que se estabelece entre essa personagem que é a R ponto com a Mércia Albuquerque.
02:55E aí a gente percebe que o teatro vai avançando de tal maneira que, em algum momento, essa personagem acontece de fato.
03:06Porque quando, então, a Ponto diz, eu não quero mais saber disso, eu não quero que você me ligue mais, porque tem uma personagem que é o R ponto, que mandou esse diário.
03:17Eu não quero que você me ligue mais. Ele falou, ok, mas quando a gente recebe a história de alguém, a gente vai lá e faz o que tem que ser feito.
03:24Então, a Ponto recebe isso e aí é a hora que ela começa, de fato, se paramentar como Mércia.
03:31Quando eu recebi esse diário, duas coisas muito estranhas aconteceram comigo.
03:41A primeira é que eu comecei a escrever outro diário, o diário de um diário.
03:45Eu já tinha feito diários na minha juventude, mas eu queimei todos eles, porque eu anotei ali coisas que eu não queria que ninguém lesse,
03:51que ninguém soubesse, eu acho, coisas que eu queria esquecer.
03:53Porque esquecer é muito bom, esquecer é ótimo, esquecer é maravilhoso.
03:58Essa expressão do texto, essas coisas acontecem, aconteceram, acontecerão, ela nasceu durante a própria escrita, ao lidar com o material.
04:07Porque, às vezes, a gente estava lendo o diário, algo que tinha se passado em 1973, e a gente estava em 2023.
04:14Então, às vezes, no mesmo dia do mês, só que, sei lá, meio século à frente.
04:23Então, a gente, essa ideia do tempo, a noção do tempo, atravessou o nosso processo o tempo inteiro, assim,
04:31no sentido de que a gente, era como se a gente estivesse no futuro da Mércia, recebendo um telefonema do passado, sabe?
04:41É como receber um telefonema do passado no futuro.
04:44E nesse telefonema, a Mércia nos interpela.
04:47E aí, como estão as coisas neste futuro, que para vocês é presente, e que para a gente a Mércia estava ligando do passado?
04:54Então, essa confusão entre tempos nos atravessou e acabou gerando a própria forma do espetáculo.
05:01Então, de repente, o tempo verbal do texto, da dramaturgia, ficou confuso também.
05:07Acontece que todas as coisas que eu sempre quis esquecer são exatamente as coisas que eu nunca esqueci.
05:12Eu não queria ter recebido esse diário, mas, agora que eu recebi,
05:21eu não tenho mais como fingir que eu não li o que eu li, ou fingir que eu esqueci o que eu li.
05:28Foi numa madrugada de tempestade que eu recebi a primeira ligação sobre Mércia.
05:33Não houve, assim, exatamente uma preparação.
05:35A gente ensaiou dois meses e pouco, e a gente foi construindo isso,
05:39construindo esse texto que a Silvia Gomes conseguiu de maneira brilhante, genial e muito livre.
05:45Então, a Silvia teve ideias sensacionais para conseguir contar a história desse diário,
05:54tão terrível, tão duro, tão triste, com coisas belíssimas também, com beleza,
06:00mas, no fim das contas, uma história triste do nosso país, da nossa vida recente.
06:07E logo na primeira semana, se eu não estiver mentindo, eu acho que a gente lotou a temporada inteira.
06:14Então, foi muito inesperado, muito surpreendente, porque é uma peça bem radical.
06:24É um teatro radical, assim, meio rebelde, meio esquisito e muito, muito bom.
06:32Eu me tornarei outra pessoa no dia 2 de abril de 1964.
06:37No dia em que assistirei Gregório Bezerra, um homem de quase 70 anos,
06:40será amarrado a um jipe e arrastado por canalhas pelas ruas de Casa Forte.
06:44Um bairro do Recife, uma da tarde, as crianças voltando da escola, rua cheia.
06:48O teatro é uma grande personagem desse espetáculo.
06:51Ele está presente no corpo da atriz, que é o momento em que a atriz diz assim,
06:57ok, deixa eu pegar as coisas que podem ser da Mércia,
07:00eu vou me paramentar com elas e agora, então, tá.
07:04Eu sou Mércia.
07:06É importante dizer que a gente está colocando o teatro como uma personagem,
07:11porque foi com ele que a gente conseguiu se encontrar com a Mércia, de fato.
07:15ter uma certa paridade com ela, né?
07:19A nossa coragem, ela está no teatro.
07:22Gregório terá os cabelos arrancados por alicate
07:25e os pés queimados com solução de bateria de automóvel, ácido sulfúrico.
07:30O autor da tortura será o doutor Gafanhoto número 2.
07:33Gregório cambaleava e abria os braços, tentando se equilibrar,
07:37enquanto recebia coices de fuzil.
07:39E o que você sabe, né?
07:59O que você sabe?
08:00Legenda Adriana Zanotto