Na Rua Fernandes Tourinho, na Savassi, ocorre um fenômeno interessante: as livrarias Scriptum, Quixote e Jenipapo estão praticamente no mesmo quarteirão, sendo que as duas últimas ficam uma de frente para a outra.
Nesta verdadeira "rua dos livros", os proprietários contam que há sim uma concorrência, mas saudável, "amigável", na qual o desejo de todos é movimentar e tornar mais possante a cena literária da cidade.
Em entrevista ao Estado de Minas, Alencar Perdigão e Cláudia Masini, da Livraria Quixote, Fred Pinho e Tatiane Fontes, da Livraria Jenipapo, contam sobre o mercado de livrarias de rua de Belo Horizonte e respondem se consideram ou não a cidade como "capital dos livros".
Esta entrevista faz parte da série especial "BH: Capital dos Livros", publicada pelo EM. Confira a reportagem completa no site: em.com.br/especiais
00:00Eu, na década de 90, estava fazendo faculdade de letras na UFMG e precisava trabalhar.
00:06Aí pensei, vou procurar emprego em uma livraria.
00:09E aí arrumei um emprego no Ouvidor, porque aqui era a grande livraria de Belo Horizonte na época.
00:14Era um encontro de intelectuais, era uma livraria referência.
00:19Aí depois saí, fui fazer outras coisas, mas ficava com ideia fixa, até sonhando mesmo com livraria.
00:25E quando eu estava trabalhando em uma agência, surgiu uma oportunidade que eu fiquei sabendo que um livreiro de São Paulo
00:32iria abrir uma livraria aqui em Belo Horizonte chamada Letra Viva, uma filial.
00:37Larguei o emprego na agência e fui trabalhar, administrar essa livraria, sempre alimentando a ideia de ter a minha.
00:46Já eram, tinha dois anos lá, cinco aqui, já eram sete anos trabalhando em livraria.
00:51Aí um dia eu passando aqui na Fernanda Estourinho, vi aquele ponto ali desocupado e escolhi, vai ser aqui.
00:59E aí realizei esse sonho meu e da Cláudia, que a Cláudia incentivava muito.
01:04Curiosamente eu chamei o dono da Letra Viva para abrir comigo, ele achou um desaforo, um atrevimento meu.
01:11Um funcionário queria abrir uma livraria e chamar o dono para ser sócio.
01:16Ele não aceitou isso de jeito nenhum.
01:19E perdeu uma oportunidade.
01:21Em um ano e meio, a revista Encontro fez uma pesquisa entre os intelectuais da cidade,
01:27apontando quais eram as melhores livrarias da cidade.
01:31A Ouvidor ficou em primeiro lugar e a gente já ficou em segundo.
01:34Eu tinha um sonho de trabalhar com cultura, mas assim, especificamente com livraria não.
01:38Começou a acontecer porque, assim, um dia a gente encontrou com uma livreira da livraria da rua
01:44e ela falou, deixa eu contar uma fofoca aqui de bastidor para vocês, que deve acontecer em breve, mas a Ouvidor vai fechar.
01:50Na semana seguinte, assim, a gente saiu uma matéria sobre o fechamento, assim, eles estavam anunciando realmente um fechamento.
01:58Eu lembro que eu li, mostrei para o Fred e veio um pensamento, nossa, imagina, a gente abriu uma livraria.
02:04Na época não era abrir uma livraria, mas era continuar com a Ouvidor, assim, não deixar que a Ouvidor fechasse.
02:09E eu lembro que eu pensei, mas não externei, não falei e fiquei com isso na cabeça, assim.
02:13E aí, no dia seguinte, o Fred chegou para mim e falou assim, ó, tô achando que eu vou lá conversar com o Bernardo.
02:18Falei, também vou, vamos fazer isso junto.
02:20A primeira ideia era continuar com a Ouvidor, continuar com o nome, fazer alguma mudança, assim, de estrutura,
02:26mas continuar com a Ouvidor.
02:28Mas aí, a gente fazendo uma pesquisa jurídica mesmo, com o advogado, a gente viu que não era possível, assim, não era interessante para a gente.
02:35Então a gente mudou essa ideia original para, ah, então vamos abrir uma livraria com outro nome.
02:41A gente mantém esse espaço como uma livraria, né, esse espaço histórico da cidade.
02:46E o nome tem a ver também com essa coisa de que a gente pesquisou um pouco a respeito das possibilidades.
02:52E o nome da rua é Fernandes Tourinho, que é um bandeirante.
02:56E a gente não queria ficar desse lado do processo civilizatório.
02:59Então, Gene Papo era um nome que tinha a ver também com a tradição dos povos originais, né, de pintar o corpo.
03:07E tem Papo no nome, que a gente queria construir alguma coisa que fosse um ambiente de conversa
03:12e também não fosse tão literal, assim, na área da literatura.
03:15Eu lembro que quando a gente estava abrindo, já tinha a ideia de abrir a livraria,
03:19eu ia disfarçadamente lá na Quixote pedir um café e ficava assuntando o Alencar e a Cláudia para pegar dicas, assim.
03:28E eles sempre foram super atenciosos e parceiros nesse processo, né.
03:34E acho que a gente conseguiu, de algum modo, construir uma relação de parceria desde antes de abrir a livraria.
03:40Já tinha ouvidor aqui, então a gente já sabia o que era ter uma livraria concorrente, assim.
03:48Concorrente no sentido que acaba é uma concorrência, é uma concorrência saudável, amigável, mas é uma concorrência.
03:56Eu já tinha um projeto chamado Rua da Literatura.
04:01Então, para ser Rua da Literatura, tem que ter livraria.
04:04Não adianta ter a Rua da Literatura e só a Quixote.
04:07Aí não é Rua da Literatura.
04:10Então, eu achei ótimo, assim, quando eu os conheci, achei, adorei os dois, adorei conhecê-los.
04:17O cliente vem aqui, precisa de um livro aqui?
04:20Não tem? Vai lá na Quixote e pega.
04:22E vice-versa.
04:23A gente tem essa troca, assim, de livros constantes, assim.
04:28Às vezes, essa rua, alguém atravessa ela aqui e você encontra com um atravessando para lá, outro atravessando para cá, para atender o cliente.
04:36Então, é muito bom isso. Isso é muito saudável.
04:38Quando fechou o ouvidor, lógico que a nossa venda aumentou.
04:44Agora, sustentaria? Não sei.
04:47Eu acho que tem que ter a concorrência.
04:49Eu acho que ela é saudável.
04:51Para ser uma Rua da Literatura, realmente tem que ter mais livraria.
04:56Ficar só uma livraria na rua, talvez não fosse bom.
05:01Eu acho que, então, é realmente saudável ter a Companhia dos Meninos.
05:06A gente produz o tempo todo vida cultural para a cidade.
05:10Aqui tem um lance curioso, que quando o microfone está ligado aqui, o som sai lá na Quixote.
05:16E quem liga primeiro, pega o som.
05:20Então, já aconteceu o contrário.
05:22O sistema de Bluetooth, né?
05:24Porque também, a gente é tão parceiro que, na hora que a gente comprou o microfone, eles vieram pedir dica.
05:31Nós compramos essa marca, que acabaram de comprar a mesma marca e dá interferência, né?
05:35Porque tem a mesma...
05:36Mesmos hertz lá de...
05:38Mesma frequência.
05:39Mesma frequência.
05:40Uma das questões que a gente colocou, antes mesmo de entrar nesse mercado e entender como funcionava realmente uma livraria,
05:47uma das questões que a gente colocou, não.
05:49A gente quer fazer eventos.
05:51A gente quer que a livraria seja também um polo cultural de debates, de formação de leitor, de clube de leitura.
05:59Então, isso estava desde o início.
06:00Depois, a gente entendeu que, assim, a livraria hoje, de rua, ela não pode ser um comércio comum que você abre a porta de nove às dezoito.
06:09Você não sobrevive dessa venda diária.
06:12Você precisa também, para pagar as contas, fazer essa movimentação com eventos e trazer gente para a livraria.
06:20A gente tem dois projetos que são fixos, assim, todo mês eles ocorrem, que é um clube de leituras que a gente chama de Genipapo Literário
06:29e a República Genipapo, que é uma parceria com o projeto República da UFMG, que a gente sempre tem um convidado para debater um livro
06:38dentro da ideia de discutir assuntos sobre a história do Brasil, de política, então, coisas mais transversais, assim, também, dialogando com a história, com o nosso tempo.
06:52Então, são esses os projetos fixos, fora os eventos que a gente promove todo mês, por fora.
06:59A gente tem dois fixos, que é o Quixote Falante, que é o clube de leitura que uniu a Quixote,
07:05mais o Grilo Falante, que é uma página no Instagram.
07:09A Cleide, que é a mediadora, era uma professora de literatura do Santo Antônio, aposentou e está com esse projeto.
07:16Aí nos unimos para fazer o clube de leitura.
07:19E tem o Violão na Quixote, que é um recital de violão, que é meia hora de violão clássico.
07:26E os outros projetos são diários mesmo, são buscas diárias.
07:31É igual a Tati falou, a livraria não vive sem esses eventos.
07:34Eu que já vivi aqui o papel de livreiro na década de 90, e hoje em 2025 é muito diferente.
07:41O livreiro hoje é quase um promotor cultural também, que você tem que estar correndo atrás de eventos o tempo todo.
07:47Tem que fazer a divulgação, não dá para ficar atrás do balcão,
07:50igual eu imaginava antes que seria a suave e romântica vida de um livreiro.
07:56Eu acho que BH tem uma vocação, assim, de cidade dos livros, cidade da literatura.
08:02E a gente tem trabalhado para isso se realizar, né?
08:05Historicamente, é uma cidade muito forte no cenário da literatura nacional,
08:10haja visto o desatino da rapaziada.
08:13Mas eu acho que alguns projetos, eles estão funcionando sem ter uma coisa para alinhavar, assim, né?
08:20Então a gente precisa resgatar isso, trabalhar mais em parceria, como a gente tenta fazer principalmente com a Quixote,
08:27para conseguir realmente estabelecer a cidade dentro de um cenário nacional do livro e da literatura.
08:34A cidade, especificamente, BH, tem várias iniciativas, tem muita gente trabalhando, muita editora, livrarias,
08:42acho que faltam ainda livrarias de bairro, as livrarias ficam mais concentradas aqui na região da Savasse,
08:47mas eu acho que ainda falta essa pluralidade aí nos bairros.
08:52Eu acho que nós temos, assim, editoras muito boas mineiras,
08:56inclusive a Quixote tem a editora Quixote, desde 2014.
09:00A Quixote lançou Carla Madeira, Tudo é rei, natureza da mordida.