Quando José Eduardo Gonçalves deu início ao Letra em Cena, nove anos atrás, a ideia inicial era homenagear a língua portuguesa apenas a partir de escritores já falecidos. Com o tempo, isso começou a formar plateia e veio a ideia de, por que não, convidar também autores contemporâneos.
O que já funcionava deu ainda mais certo, e o Letra em Cena se estabeleceu como um dos principais eventos literários de encontro entre autores e leitores na capital mineira.
Em entrevista ao Estado de Minas, José Eduardo Gonçalves conta sobre o mercado editorial de Belo Horizonte e responde se considera ou não a cidade como "capital dos livros".
Esta entrevista faz parte da série especial "BH: Capital dos Livros", publicada pelo EM. Confira a reportagem completa no site: em.com.br/especiais
00:00Sou nascido em São João del Rey, uma cidade de forte viés cultural.
00:05Acho que isso já me trouxe alguma influência.
00:07A primeira biblioteca pública de Minas Gerais está lá em São João.
00:11E uma família de classe média, mas que valorizava muito os livros.
00:15Então, minhas irmãs mais velhas e meus irmãos sempre me passavam livros.
00:20Até os livrinhos de bolso, livros policiais, livros de faroeste,
00:23meu irmão mais velho passava.
00:25E aí fui tomando gosto pela leitura e pela escrita.
00:28E desde pequeno eu gostava de escrever.
00:30Chega num determinado momento da vida que a gente tem que tomar uma posição.
00:34E São João del Rey, na década de 70, nós estamos falando aí, meados da década de 70,
00:39não tinha a bela universidade que tem hoje.
00:43Eu queria fazer jornalismo.
00:45A coisa mais próxima que tinha da escrita era o jornalismo.
00:49Eu já tinha feito pequenos jornais em São João del Rey.
00:51Fiz alguns jornais lá, alguns mimeografados que eram distribuídos.
00:55E a gente passava do comércio para pegar patrocínio, apoio para fazer jornal, mimeografado mesmo.
01:03Eu fiz uns três jornaizinhos lá.
01:05Fiz jornal em colégio e tudo.
01:07A minha pegada era essa.
01:09Eu precisava fazer jornalismo.
01:11E não tinha como estudar em São João del Rey.
01:14Eu me mudei para Belo Horizonte para fazer primeiro meio semestre de cursinho.
01:19E passei logo na universidade, fiz a PUC.
01:23A gente chamava de católica na era.
01:25Hoje chama de PUC.
01:26Formei então em comunicação, com muita vontade mesmo de exercitar aquilo que eu achava que era a minha vocação.
01:34Ainda como formado, eu comecei a fazer alguns estágios.
01:38Passei pelo estado de Minas num período muito curto.
01:40E depois fui para a sucursal do Globo.
01:42E quando eu estava para ser promovido para a equipe do Globo, um ex-professor meu da católica me fez uma oferta irrecusável.
01:49Eu disse, olha, eu preciso fazer uma revista numa grande empresa.
01:53Queria te levar para essa assessoria.
01:55Aí eu falei, caramba, eu vou para uma assessoria de imprensa, não é isso que eu quero e tudo.
01:59Mas fui porque me pagavam os três trabalhos que eu tinha, me pagavam.
02:04E eu estava casado com 20 anos naquela época.
02:06Tinha casado com uma colega de faculdade.
02:08Não tinha jeito.
02:09E aí eu fui para a assessoria e acho que tive uma longa experiência lá.
02:15Muito boa, muito aprendizado.
02:16Meu chefe foi de Móstres Românicos, foi um jornalista muito importante.
02:21No paralelo a isso, eu já comecei a também querer dar vazão à coisa da escrita ficcional.
02:28O meu primeiro livro foi em 1998.
02:33Um livro chamado Cartas do Paraíso.
02:35Saiu pela editora Masa, um livro de contos.
02:37Quando chegou no ano 2000, eu dei uma virada.
02:39Eu quis dar uma guinada na minha vida, porque recebi um convite do Ziraldo.
02:45Estava juntando um grupo de mineiros para fazer uma revista aqui, que é a revista Palavra.
02:50Então, uma revista maravilhosa.
02:52Olha que capa linda.
02:54Uma revista que nunca tinha sido feita nesse tamanho ainda no Brasil.
02:58Numa época em que São Paulo estava produzindo a revista Bravos.
03:01Aí nós falamos assim, não, nós vamos produzir uma revista que é para o Brasil inteiro.
03:05Então, essa revista foi uma experiência maravilhosa, que durou 16 números, de 1999 ao ano 2000.
03:11Eu comecei lá editando a página de perfis.
03:14No final, eu estava como diretor de redação, mas como equipe muito bacana.
03:18E conciliando isso com o emprego que eu tinha.
03:20Infelizmente, ela não se viabilizou economicamente.
03:25Tivemos que encerrar, matar a revista na 16ª edição.
03:29Só que aí minha vida já tinha virado do avesso.
03:31Eu falei assim, não dá mais para...
03:33Entendeu?
03:33Essa é a minha pegada.
03:34Eu quero viver no segmento de cultura e literatura.
03:38E aí sim, eu saí de lá, fiz um escritório de comunicação, junto com a Silvia Rubião, minha sócia.
03:44E começamos a desenvolver projetos editoriais variados, né?
03:49O mais conhecido deles é a coleção BH Cidade de Cada Um, que o primeiro número foi lançado em 2003.
03:56Uma coleção que eu não tinha a menor ideia de que se transformaria no que se transformou.
04:02Um sucesso.
04:03Em 20 anos de coleção, agora 21 anos.
04:06Nós já lançamos 40 títulos, tem mais três já a caminho.
04:10Caiu nas graças do Belo Horizonte, das pessoas que moram aqui.
04:14Tivemos uma outra coleção, chama BH Perfis, para homenagear pessoas que fizeram a vida em Belo Horizonte.
04:20Às vezes nem nasceram aqui, como o doutor Hugo Werneck.
04:22A minha carreira de escritor, lancei poucos livros, mas eu venho mantendo essa carreira viva.
04:27Meu último livro, Pistas Falsas, que foi lançado em 2023.
04:33Ganhou o prêmio da Academia Mineira de Letras de Livro do Ano.
04:36Enfim, eu tenho uma atuação como editor, como escritor e também como curador de eventos literários.
04:43Durante nove anos, eu fui curador do Festival de Literatura de São João Del Rey, Felipe.
04:50Criei um projeto chamado Ofício da Palavra, que durou também nove anos no Museu de Artes e Ofícios,
04:55onde eu convidava autores para conversar sobre autores de literatura contemporânea.
05:01Tive mais de 70 entrevistas nesse projeto, durou nove anos e agora estou há nove anos, exatamente, fazendo Letra em Cena,
05:08que é um projeto no Centro Cultural do Minas Tênis Clube, Centro Cultural Unimed BH Minas.
05:14Eu acho que eu vou ultrapassar esse número fatídico, nove anos.
05:21Eu acho que eu vou cruzar, nós vamos chegar no décimo ano.
05:25Eu acho que falta, e faltava, né, a Belo Horizonte, iniciativas como essas, assim, de permanentemente você colocar a literatura contemporânea em pauta.
05:36Essa era a pegada do Ofício da Palavra.
05:39Quando eu fiz o Letra em Cena, até para ter uma diferenciação, eu pensei num projeto que pudesse homenagear a literatura em língua portuguesa.
05:47Então, ele começou tratando só de escritores icônicos já falecidos.
05:51Vem o Zé Wisnik aqui falar de Mário de Andrade, o Silviano Santiago para falar de Machado de Assis.
05:57Quer dizer, o que eu queria com isso é atrair pessoas para um projeto literário.
06:01E isso começou a formar público.
06:03E há dois anos eu achei que a gente precisava ampliar esse leque também para trazer autores contemporâneos para falar da própria obra.
06:10Então, o projeto hoje, ele tem um misto.
06:13Ele continua homenageando autores já falecidos e alguns, assim, que precisam, porque andam meio esquecidos, né.
06:21Então, assim, eu acho fundamental continuar isso.
06:24A coerência do projeto continua sendo a literatura em língua portuguesa.
06:28Esse é o foco.
06:29Mas eu posso chamar autores contemporâneos para vir aqui.
06:32E é bacana você ver que tem um público que gosta.
06:35Que gosta de livros, gosta de literatura.
06:39Se eu puder continuar fazendo isso, eu vou continuar fazendo isso.
06:41Eu acho que é meu papel ser também um pouco uma plataforma para apresentar esses nomes, sabe.
06:48Acho que é uma responsabilidade que eu tenho, como alguém da cena de Belo Horizonte, que já conquistou um espaço,
06:55continuar promovendo esses encontros, sabe.
06:58E promovendo outros autores.
07:00Minas já foi conhecido, assim, por algumas diásporas, né, de escritores.
07:03Teve uma geração inteira, né, de Drummond, de Nava, de Fernando Sabino, Otto Lara, que foi para o Rio.
07:10O Rio era um grande centro, antiga capital da república, assim, um grande centro, né, para onde esses nomes corriam, né, em termos de visibilidade,
07:19para realmente conseguir se inserir nesse mercado.
07:23Já na década de 70, começa um outro movimento, talvez um pouquinho antes, no final dos anos 60, que é São Paulo.
07:31Geração de Humberto Werneck, Ivan Ange, muita gente.
07:34O Vilela, o Luiz Vilela foi, depois voltou.
07:36Agora, com o passar dos anos, a própria cidade de Belo Horizonte, ela foi ganhando mais densidade, mais infraestrutura,
07:46e foi demandando se criassem algumas fontes de permanência, porque nem todo mundo já conseguia ser absorvido pelo mercado de São Paulo.
07:53Você já começa a ter aí uma certa crise da imprensa, já lá para trás, né.
07:59Então, já não era aquele negócio, vai todo mundo que vai conseguir entrar.
08:03Então, começou a se tornar mais difícil essa migração, e também um desejo de transformar a cena local, né.
08:12Se a gente pensar em Belo Horizonte, hoje, ela é muito, muito diferente da Belo Horizonte dos anos 90 para cá.
08:20Eu vim para BH e teve uma época que, isso não tem nem tanto tempo, né, 20, 20 e poucos anos atrás,
08:25que você podia deitar na Fonso Pena no carnaval, que não acontecia nada, não passava um carro, não passava um ônibus.
08:31Então, era uma coisa assim, a cidade não tinha essa diversidade que tem hoje, essa oferta que tem hoje,
08:39uma produção cultural muito grande, e que faz parte de todo um movimento social, né,
08:46assim, de pertencimento, de tomar cidade para si.
08:49Você olha o movimento na Praça da Estação, ali naquela região ali, naquele, na Baixa Estação ali, né,
08:56na Praça da Estação, no Viaduto de Santa Tereza, os coletivos, o surgimento de muitos coletivos, né,
09:03o movimento, o movimento negro também se afirmando muito.
09:07O panorama da cidade foi ficando mais efervescente, e com uma juventude que já não, já não se conformava mais,
09:14de ser, assim, tratar Belo Horizonte como uma cidade de hospedagem, né.
09:19Você fica aqui, mas você vai fazer as coisas acontecerem lá fora.
09:23Eu acho que várias coisas foram acontecendo, essa mobilização social muito grande, né,
09:28com a retomada do carnaval, com a discussão do espaço público, né, urbano,
09:33que ganhou muito peso em Belo Horizonte nos últimos 20 anos,
09:36e com um desejo realmente crescente das pessoas fazerem as suas biografias aqui, na cidade.
09:44Porque também no mundo editorial, começaram a aparecer editoras aqui.
09:50Já tem algumas que são mais antigas, mas, assim, esse fortalecimento editorial também é de um,
09:55vamos dizer, de 20 anos pra cá.
09:57Hoje nós temos várias editoras independentes, muitas independentes,
10:00que ajudam a escoar uma produção literária, que às vezes não tem acesso a grandes editoras.
10:06Mas já tem editoras, né, como a Relicário, a Autêntica,
10:11a própria editora da UFMG, editoras que têm uma projeção nacional.
10:17E editoras, vamos dizer, de formação.
10:19A gente nunca sabe se vai ter público.
10:21A gente confia que vai ter.
10:23Se começou a pingar, você fala assim, a pessoa não vai vir, não vai sair de casa.
10:28Porque hoje a concorrência, você não concorre com outros projetos literários.
10:33Porque quanto mais tiver, melhor.
10:34Se tiver o Sempre o Papo, se tiver o Letra em Cena, né,
10:37o Sempre o Papo é um sucesso.
10:38Se tiver vários projetos, a academia, pode ter tudo ao mesmo tempo.
10:43O problema não é esse.
10:43O problema é que o streaming, a possibilidade de você ficar em casa,
10:48tendo acesso a todo tipo de filme, a um lazer, assim, bem confortável,
10:54você ter que enfrentar a rua, né, com esse trânsito horroroso que a gente tem.
10:59Todo evento que eu faço, eu já costumo prevenir os autores.
11:03Ó, a gente não sabe, sabe?
11:04Se o público vai comparecer.
11:06Tem comparecido, tem comparecido.
11:09A literatura também precisa dos grandes nomes.
11:12Por exemplo, a Carla Madeira, ser o que é, tem uma importância enorme para todos nós,
11:17escritores do Belo Horizonte, porque as pessoas vão ouvi-la,
11:21as pessoas vão na livraria buscar um livro da Carla,
11:23pode trombar num livro meu, livro de um outro autor.
11:25A gente vê que tem público para a literatura, né, mas às vezes as pessoas nem sabem direito como alcançar.
11:33As editoras independentes têm muitas dificuldades.
11:35Eu saí por uma editora independente de São Paulo e os livros não são distribuídos em Belo Horizonte.
11:39Então, eles acreditam na venda online.
11:42Nem sempre isso funciona.
11:44É um sofrimento.
11:44Eu lembro quando eu fazia o Ofício da Palavra lá no Museu de Artes e Ofício,
11:50às vezes você trazia uma pessoa maravilhosa, mas ali não tinha dificuldade de estacionamento, cara.
11:54Já tem isso.
11:55Estava morrendo de medo.
11:56Então, eu podia levar um Arnaldo Antunes e lotar,
11:59mas podia levar uma Ana Miranda, sei lá, e ter 15 pessoas.
12:08Então, assim, o risco é total.
12:11A gente nunca sabe realmente se vai ter um público à altura daquele nome que a gente está trazendo.