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00:00No dia 18 de setembro de 1950 foi pro ar a primeira transmissão de televisão na América Latina.
00:21E só tem eu vivo. Fiz a primeira novela, o primeiro Shakespeare, a primeira videotape, a primeira Cores, a primeira da Nova República.
00:32Você quer saber como é um ator por dentro? Eu explico.
00:39Eu sou de Minas, modéstia à parte. E minha mãe era espírita, não tem muito em Minas, né?
00:49E ela era médium de incorporação. Mas minha mãe era espírita e atriz.
00:55A atriz era também. Minha mãe foi uma mulher excepcional, sabe?
00:58O ser atriz e o ser espírita deixou alguns legados pra mim que eu prezo muito ansiosamente.
01:08Eu chegava em casa, às vezes, que eu vinha lá do mato, né?
01:13A minha mãe pegava e fazia uma coisa quase que de índio.
01:18Ela chegava e falava, vem cá!
01:20Ela era muito pequenininha também.
01:23Ela riscava a minha perna assim.
01:26Quando você molha e seca seu sol, fica um risco, né?
01:31Ela fica um risco.
01:32Ah, foi nadar no poção, é fundo, vai apanhar.
01:35Eu falava, mãe, vai apanhar.
01:37Me segura que eu quero te bater.
01:38Ela era pequenininha, eu segurava ela, né?
01:42E ela, pá, pá, bate.
01:43Segura direito.
01:44Eu não vou segurar direito, eu só bate direito.
01:47Não.
01:47E pá, pá, pá.
01:48E eu segurava ela.
01:49Ia caindo, eu segurava.
01:51E acabava dançando.
01:54Não tem legado maior que esse.
01:58A mãe que começa a bater, me termina dançando.
02:00E eu, quando me lembro disso, me lembro que meu primeiro sucesso no teatro, eu tinha uns
02:0713 anos, mais ou menos, lá no interior.
02:11E eu fazia uma peça que é um sucesso na comédia de costume brasileira, né?
02:17Chama-se Ladra.
02:20É um belo nome.
02:21Nome do verbo ladrar, substantivo.
02:24Ladra.
02:24Eu era um filho que roubava uma bobagem lá, a mãe assumia a culpa e era condenada como
02:31ladra no lugar desse filho.
02:33Trabalhávamos eu e minha mãe.
02:35A minha mãe era a minha mãe e eu era a ladra e eu era...
02:39E eu ainda hoje, eu me lembro bem do olhar dela, que muitas vezes não era do personagem,
02:49era da mãe.
02:50Vendo o filho crescer e ser ator e romper limites.
02:56É muito bonito aquele olhar dela.
02:59Me conduz.
03:00Me trouxe até aqui, agora.
03:03O pai me mandou embora, lá, desemboque.
03:05Olha, desemboque no interior, bem no interior mesmo, na roça, né?
03:09Me botou em cima de um caminhão de manga, que vinha para São Paulo.
03:13Quase mil quilômetros de São Paulo, naquele tempo, eu vim naquele caminhão de manga.
03:20E ele não me deu nada, não.
03:22E eu cheguei e parou para descarregar as mangas no mercado.
03:27Mercadão de São Paulo, lindíssimo, o mercadão.
03:30E eu ajudei a descarregar as mangas e fiquei olhando para o outro.
03:34Agora, preciso comer.
03:35Aí, ajudei o moço do caminhão a descarregar as mangas.
03:38Ele me deu uns cobrinhos.
03:39Eu falei, opa, a janta está aqui.
03:42Agora, precisava pensar amanhã.
03:44E encostou um outro caminhão de abacaxi.
03:47Eu ajudei.
03:48Foi penoso, mas ajudei a descarregar.
03:50Ele me deu uns cobrinhos.
03:51Resultado.
03:52Fiquei burro, sem rabo.
03:53Comecei empurrando fruta no mercadão de São Paulo.
03:58E com 16 anos.
03:59O mercadão de São Paulo é perto da zona do Meretrice.
04:03O confinamento lá de São Paulo, Rua Mores e Rua Itaboca.
04:08E eu dormi mais no caminhão, as primeiras noites.
04:12Até um dia que chegou um rapaz lá, que era menino de rua como eu.
04:16Falou assim, vamos na zona.
04:19Eu falei, o que é zona?
04:20O que é zona?
04:22É as mulheres.
04:23Eu falei, mulher?
04:24A coisa propriamente dita, mulher.
04:27Ele disse, é mulher, vamos lá.
04:28Eu falei, eu vou numa casa de uma polaca.
04:32As polacas.
04:33Então, uma judia, uma judia francesa, chamada Madame Polet.
04:40E se encantou comigo, eu falei, opa, está para mim.
04:44E fui morar com ela.
04:45Fiquei morando na zona.
04:47Mas eu sempre queria trabalhar no rádio.
04:49Eu queria ser locutor.
04:51Porque era muito bonito.
04:52Não existia televisão?
04:54Bonito eram aquelas vozes maravilhosas.
04:57Você precisa fazer alguma coisa, porque você é muito louco.
05:00Você precisa fazer alguma coisa, menino.
05:02Como é que você fica lá embaixo do caminhão?
05:04Eu falei, não, o que é que você quer fazer?
05:06Eu quero falar no rádio.
05:07Fala no rádio.
05:09Ele falou, só bom.
05:10Me levou para fazer teste.
05:12Na Ratupi de São Paulo, lá no Sumaré.
05:14Aí, o sujeito me deu um papel lá para eu ler.
05:20E se eu falo assim ainda hoje, imagina o que eu falava naquele tempo.
05:24Era uma anatomia.
05:27Eu peguei, liberto, chatóis.
05:29Ratupi de São Paulo, a mais poderosa emissora paulista.
05:35O homem falou, de onde é que sai a sua voz?
05:37Do sovaco?
05:38Eu falei, não, não está aqui mesmo.
05:41E o meu menino ficou voz de sovaco muito tempo.
05:44Ele ia te embora, rapaz.
05:45Só tem rosto que vai ficar com essa voz de sovaco que você quer vir me falar aqui.
05:48Ele ia te embora.
05:50E eu saí com a minha meio mãe, meio dama.
05:56Foi saindo, deve ter ficado meio patético.
05:58Que o operador de som, que tinha ligado o microfone,
06:02virou e falou, ô menino, vem cá.
06:03Você não quer trabalhar aqui?
06:04Eu falei, eu quero, eu moro na zona, eu quero sair da zona.
06:07Moro lá na zona.
06:09Ele falou, não, vem cá, amanhã eu te ensino.
06:11E me ensinou.
06:13No dia seguinte, às quatro e meia da manhã, eu fui lá,
06:16porque eu estava vendo isso aqui, estava apaixonado e me lembrando.
06:21Porque o primeiro serviço era chegar de manhã, ligar as válvulas.
06:26Não tinha transistor ainda, eram as válvulas grandes, assim.
06:30Eu ligava e ficava espirrando, olhando assim, até esquentar o filamento.
06:34Quando ficava vermelho, eu descia, ligava o transmissor,
06:39chegava os caipiras para fazer aqueles programas.
06:42Ô, vamos trabalhar, vamos acabar um, Deus está na hora de trabalhar.
06:44E um dia, o Oduvaldo Viana, maravilhoso Oduvaldo Viana,
06:50falou para mim, o que você faz lá de manhã?
06:52Não, os cabocos me pedem para me imitar.
06:55Eu imito ouro, cugadinha, cachorro, cavalo.
06:59Eu sou especializado em cavalo, do meu povo.
07:04Ele falou, venha me trabalhar comigo, vem me imitar na minha radionovela.
07:09E aí eu fui.
07:11E o Oduvaldo Viana um dia, numa radionovela chamada Suspeita,
07:16me deu um papelzinho, me titinho.
07:18que eu me lembro da fala até hoje.
07:20Não sei o que era o personagem, ele quer dizer assim,
07:22eu sou jazón, violinista de bota.
07:26Sei lá.
07:27Mas ele falou, que nome que eu falo no fim?
07:30Se eu falar, meu nome é Ariclindres Venanço Martins.
07:34Ele falou, você é baiano?
07:36Eu falei, não, eu sou mineiro.
07:38Ariclindres Venanço Martins, não pode falar esse nome, não.
07:41Nome muito comprido.
07:42Então vou telefonar a minha mãe.
07:44Telefonei minha mãe no interior, aquele magnético, telefone assim.
07:47A senhora não me arranja um nome pra mim, que eu vou trabalhar no rádio.
07:51E ela falou, mas o seu nome é tão lindo.
07:55Mãe, mãe, mãe, mãe, não pode falar isso não, que é comprido.
07:59Ela falou, põe o nome do meu guia de luz, que você vai ser muito feliz.
08:06Mas ele chama Lima Duarte.
08:10E eu sou obrigado a acreditar em milagres ou não.
08:15No dia 18 de setembro de 1950, foi pro ar a primeira transmissão de televisão na América Latina.
08:23No estúdio tinha umas 30 pessoas, uma poetisa, as autoridades de ocasião, o próprio Chateaubriand.
08:31E só tem eu vivo.
08:37A Hebe Camargo estava também, foi o ano passado, ela faleceu, né?
08:41Mas só tem eu vivo.
08:43Eu participei fazendo o Deus lhe Pague, do José Camargo, com uma baba postiça.
08:49Naquele tempo era postiça e preta.
08:54Eu dizia uma esmolinha, pelo amor de Deus, e comia um pastel.
08:58Houve uma série de programas lá, chamada TV de vanguarda.
09:02Nós fizemos durante 16 anos, fizemos todo o repertório mundial.
09:06Toda semana uma peça, durante 16 anos.
09:10Nós fizemos até, pô, fizemos todo o Shakespeare.
09:13Eu tenho orgulho de ser, de ter feito o primeiro Shakespeare na televisão.
09:19Eu fui o Hamlet.
09:20A primeira telenovela eu fiz em 1952, né?
09:36Fui o primeiro bandido.
09:38Eu era um advogado meio malandro, acho, não me lembro de pouca coisa, né?
09:43Afinal de contas, são 64 anos.
09:45Mas fiz isso, a vida me pertence.
09:50Fiz a primeira novela, o primeiro Shakespeare, a primeira videotape, a primeira Cores, a primeira Nova República.
09:58Nós dois homens demos o primeiro beijo de um homem, o outro homem,
10:05nesse grande teatro Tupi, dirigido pela vanda Cosmo, Cláudio Marzo e eu.
10:22Primeiro beijo, não foi gay porque eles não eram gays,
10:25mas o primeiro beijo de um homem, num outro homem, foi Cláudio Marzo e Lima Duarte.
10:32O contexto.
10:35A peça se passa no Waterfront, a peça se passa no Cais do Porto.
10:42Era um estivador ítalo-americano.
10:45E vivido sempre era o Rafa Valoni, né?
10:49E a vanda Cosmo era diretora e atriz, minha esposa.
10:55Nós criávamos uma menina, que era Rita Cleós, uma atriz muito bonitinha.
11:01E um dia essa atriz chega e diz pro padrasto, pai, eu vou trazer o meu namorado pra você ficar conhecendo ele como seu namorado.
11:15Não quero que você ande com qualquer um, não.
11:18Com quem é que você tá andando?
11:20Você percebe que ele tinha um amor, uma gotinha, um pouquinho além do normal,
11:30que seria de um padrasto pra com a sua enteada.
11:34Quem é?
11:34Aí traz o Cláudio Marzo que interpretava.
11:38Eu digo isso aí, você não tá vendo que ele não é um homem?
11:41Isso não é um homem.
11:42Como é que você pode trazer isso?
11:43Não, quer ver como ele não é um homem?
11:45Como ele não é um homem, quer ver?
11:47Pega ele.
11:48Dê um beijo na boca mesmo.
11:51Olha aí, olha aí.
11:52Foi um momento de grande intensidade porque torcicou.
11:57O que é isso?
11:58Mas eu beijei de boca fechada o Cláudio Marzo.
12:03O próprio nome, que modéstia a parte, foi criado por mim,
12:07precisamos de um homem que é um Beto, mas quer ser um Rockefeller.
12:12Então, Beto Rockefeller.
12:15E o Braulio escreveu uma maravilhosa novela, muito bem escrita, muito esperta,
12:21muito inteligente, Luiz Gustavo Té, brilhantíssimo, Irene Ravache.
12:26Tinha um elenco improvável hoje.
12:28Essa foi, talvez, a coisa mais importante que eu tive a oportunidade de dirigir.
12:36É por isso que eu te amo.
12:38Vem lá.
12:40Me dá um beijo.
12:42Mas um beijo de vitória.
12:43De vitória.
12:44De vitória.
12:51A Marisa Sanches, ela foi corista do Cassino da Urca.
12:59Bom dia, Pepe.
13:01Bom dia, senhora dona Lúcia.
13:04Quem diria, hein, Pepe?
13:07Por favor, senhora dona Lúcia, sem muita intimidade.
13:11Por favor.
13:12Pois não.
13:13A gente conversava muito sobre música.
13:16E foi por aí que ficamos muito amigos, nos unimos, tivemos muito tempo juntos.
13:22Tivemos uma filha chamada Mônica, que é minha filha, tem uns 60 anos hoje.
13:28E a Débora, que era filha só dela, mas eu vivi com ela, com a mãe, quando a Débora tinha
13:37três anos, dois, três anos, então é minha filha também.
13:42E vivi muito tempo com ela, muito tempo.
13:44Era atriz e cantora.
13:46Eu tinha, quando me unia a ela, eu tinha o quê?
13:49Dezenove anos, bem mocinho mesmo, né?
13:52E vivi plenamente essa juventude, essa segunda juventude com ela.
13:56Muito feliz.
13:58Há muito tempo que eu não pinto um cigarrinho de pai e pujada na mão.
14:01É, então fome esse que eu preparo o outro.
14:04É, o cheirinho tá bom.
14:05É um cangaceiro que não mata, eu falo, um cangaceiro que não mata, é um matador
14:11que não mata.
14:13Uai!
14:14E comecei a pensar, criar é isso, né?
14:18Fui num tintureiro, lá na Estação da Luz, no São Paulo, falei, querido, você tem
14:26uns ternos que esses caras lavem e não tem dinheiro pra vir buscar?
14:29Tem?
14:30Tem, tem um aí.
14:33Comprei, eu comprei, meu Deus.
14:35No terno, pro matador que não mata.
14:39Fui num churrasco em Sorocaba.
14:42Tava mexendo no porta-malas de um carro lá, vi um chapéu, falei, opa, chapéu do matador
14:47que não mata, tá aqui.
14:49Afanei o chapéu do homem lá do churrasco.
14:52E depois comecei a pensar num olhar, num olhar do que foi o matador e não mata.
14:58E ensaiava, assim.
15:00E depois no som dele, aí que foi o grande achado, né?
15:03O som dele, o som do matador, que não mata.
15:08E aí, criei o personagem, eu montei ele, montei ele lá com fome, cara.
15:17Voltei lá, andando embora.
15:19A mim o senhor deu uma palavra aos jornalistas, o senhor deu outra.
15:25Só me dá uma cachaçinha, se me faz favor.
15:28E aí foi, isso aqui foi um fiozinho, assim, que o povo puxou e o pó desatou a novela.
15:38Ele não mata ninguém, é uma alma pura e perdida nesse universo de morte e crime.
15:45E foi uma delícia fazer o Zeca de Alba.
15:47Pois, muito bem, fiz os três capítulos, não pôde mais sair da novela.
15:52O povo, não, o que é isso?
15:54Se tirar, eu não assisto mais a Globo.
15:56Tive que continuar e matei o Dorico.
16:01E é um?
16:03O senhor jurou não matar mais.
16:06E é dois?
16:07O patrinho patrissista vai lhe castigar.
16:10E é três?
16:17Senhorzinho Malta, estou certo.
16:20Estou certo, eu não sei o porquê.
16:23Porque eu falo muito com as mãos.
16:25E tinha muita pulseira, faz muito barulho.
16:28O som era feito de baixo, o cara fazia com o microfone assim.
16:31E o operador chegou e falou assim, Lima, sacode muito a mão, tem que cobrir na fala.
16:39E ele disse, não, não, vamos incorporar.
16:41Ah, sim, senhorzinho, você está esquisito.
16:44Que bicho te mordeu?
16:49Quem foi esse padre que esteve aqui?
16:51Então é, tchau, eu mostro o que eu estou sacudindo.
16:54É o ouro, cara.
16:56E se eu chegar e falar para você, estou certo ou estou errado?
17:00E sacudir o ouro, você vai falar que eu estou certo.
17:04Estou certo ou estou errado?
17:07Para mim, você está sempre certo, cachorrinho.
17:09Não, não me chama de cachorrinho na frente dos criados.
17:12No dia de guarda, eu estou sentado em casa para assistir.
17:16No Jornal Nacional, depois do Jornal Nacional eu entrava.
17:19No Jornal Nacional, o ministro Armando Falcão, o nada consta, né?
17:25Ele disse, está proibido.
17:27Está proibido a novela.
17:29No dia seguinte, eu tenho uma reunião na sala do Boni.
17:33Nessa reunião estava todo o elenco.
17:36Todo.
17:37E mais a Jeanette Clare.
17:39E o Boni disse,
17:42olha, vocês vão ler o contrário de vocês.
17:45Tem mediante um motivo de força maior.
17:49Está todo mundo na rua.
17:51A não ser que
17:52vocês me aprendem uma novela em 15 dias.
17:57Está aí a Jeanette Clare para falar o que ela tem.
18:02Era grande autora, né?
18:04E a novela tinha, era do marido dela, Dias Gomes, a proibida.
18:09Ela disse, olha, eu tenho uma novela de rádio.
18:12Tem dois personagens masculinos, que pode ser o Lima, que é o senhorzinho,
18:16e o Coco, que era o Roque Santeiro na ocasião, né?
18:23Então, podemos fazer uma novela que os dois ia ter no papel também de uma menina,
18:28Beth, que era Paulcino.
18:30Alguém me chamou, não, você já pensou pela minha cabeça o que você estudou assim?
18:33Então, podemos fazer, fizemos a toque de caixa, uma novela que foi talvez o maior sucesso da Jeanette,
18:40que ela era uma mulher cheia de grande sucesso, né?
18:43Foi o pecado capital.
18:44Eu vim te dizer que eu te amo.
18:52Eu vim buscar você.
18:56Eu vim dizer também que a vida para mim está muito difícil, está quase impossível sem você.
19:01Eu tenho certeza que o Sargento Getúlio é uma interpretação absolutamente primorosa,
19:12modéstia à parte.
19:14Falemos de verdade, não falemos de bobagem, de fofoca.
19:18Porque eu me apaixonei pelo personagem de maneira tal e com tal ardor,
19:23que ficou impresso no celuloide, que o filme é película,
19:27na película ficou impressa essa paixão.
19:30E o João Lobaldo assistiu comigo.
19:31Terminou o filme, ele saiu, comprou um Sargento Getúlio,
19:35e fez uma dedicatória que é tão linda, me comorre e me mobiliza, que é...
19:41Ele, João Baldo, autor do livro, escreveu ao verdadeiro Sargento, do seu biógrafo e admirador,
19:53João Baldo Ribeiro, e me deu esse livro com essa dedicatória.
19:57A metáfora do Sargento Getúlio era muito bonita, ele era um homem que não sabia nada, nada de nada.
20:04Ele não sabia ler, não sabia escrever, não sabia amar, não sabia conviver, não sabia nada.
20:09Mas tinha um dom, não era um predicado, era um dom.
20:13Ele pegava nas flores e elas visejavam.
20:16Ele segregava lá uma enzima, ele dizia que isso é possível cientificamente.
20:22Tinha boa mão, como se dizia, tinha uma mão muito boa para a jardinagem.
20:27E ele, as flores cresciam na mão dele.
20:32E ele vai aprendendo mais e mais, sobre menos e menos,
20:36até terminar um grande homem, senador da república, candidato a presidente.
20:42Mas as flores não sejam mais.
20:44Essa era a hipérbole.
20:47Então tinha um negócio do Salvador da Praça, de vai beijar, não vai beijar.
20:51Quando ele vai beijar? A Maitê, o Caboclo.
20:55Então eu chegava em casa, o porteiro falou,
20:58pô, não vai beijar, não vai beijar.
21:00Como é que vai dar o beijo?
21:01O chopeiro de praça falava, ô, não vai beijar.
21:05A mulher na rua disse, ô, não vai beijar.
21:08Chegava na emissora e disse, pelo amor de Deus, me beija, que eu não aguento mais.
21:13E a gente, e é natural, é até perdoável,
21:19é até impende-se
21:22que de vez em quando o personagem te pega
21:28e você abandona a razão e se abandona aos sentimentos.
21:35E aí a folga tem que confundir.
21:39Quando você não procede uma telenovela, isso é muito provável.
21:43Acontece, foi o que aconteceu.
21:44Tudo que eu tenho é seu.
21:48E eu sei, eu não tenho nada.
21:50Eu não tenho nada.
21:51Eu só tenho a minha vida pra viver.
21:52Ah, pois, ela é sua.
21:55A minha vida é sua.
21:56Eu, eu sou seu.
22:00Puxa, é muito difícil você se livrar disso.
22:03Só com uma larga experiência com a minha,
22:06depois de muitos anos,
22:09é que eu passo a perceber que
22:11o poeta é um fingidor.
22:13E finge tão completamente
22:15que finge que a dor,
22:18há dor que libera, sente.
22:21Todo mundo sabe isso do Fernando Pessoa.
22:24Mas pensa nisso.
22:26O poeta,
22:27ou eu adapto pra ator,
22:29o ator é um fingidor.
22:33E finge tão completamente
22:35que finge que a dor,
22:40há dor que libera, sente.
22:43Ou finge que é amor,
22:46o amor que libera, sente.
22:49Esse jogo entre a fantasia e a realidade
22:51é um jogo difícil de ser jogado.
22:55Só os muito espertos,
22:56ou os muito cínicos,
22:59sabem jogá-lo.
23:00Eu não sei bem.
23:02Aprendi e virei cínico.
23:05Mas não sabia jogar naquele tempo.
23:08Você tem que se equilibrar
23:09numa corda inconsútil,
23:12frágil,
23:13te mede a fantasia e a realidade.
23:16Ah, muitas vezes você escapa e
23:18cai pra dentro da fantasia
23:21e volta,
23:23trópico,
23:24cambaleante,
23:25encarar a realidade
23:27até o próximo tombo.
23:28Há muito tempo que eu não me lia assim,
23:32me divertia assim.
23:33Muito.
23:35Eu também não.
23:42E lá, Batista.
23:43Tchau.
23:49Odeio muito, ouço muita música
23:51e vivo sozinho.
23:52E tenho 85 anos.
23:54O pessoal fala,
23:55puxa, como você é forte.
23:57Claro, eu não fumo,
23:59não bebo,
24:00não cheiro cocaína,
24:02não fumo maconha,
24:03não copo carne vermelha
24:05e vivo sozinho.
24:07Aí os caras,
24:08hoje só vai vir 200 anos.
24:10Tomara.
24:11Nossa vida não foi fácil, não?
24:13Não tem sido fácil.
24:16Tivemos muitos altos,
24:17baixos,
24:18tivemos coisa boa,
24:19coisa ruim.
24:20Como todo mundo
24:21teve vida difícil,
24:23tivemos nós
24:24com muita dor,
24:26muito sacrifício,
24:27muita alegria.
24:29Você quer saber
24:29como é um ator por dentro?
24:32Eu explico.
24:33Num ator,
24:35o por dentro
24:36está por fora.
24:37E o por fora
24:38está por dentro.
24:41Prato simples
24:41para um ator
24:42jogar essa vida
24:44de fora
24:45para dentro.
24:46Depois devolver
24:47essa mesma vida
24:48botando para fora.
24:50Entre uma coisa e outra,
24:52isso é que chamam
24:53arte.
24:55o que o Saniase
24:56tem de fazer
24:57quando ele decide
24:58morrer
24:59é demonstrar
25:02todo o desapego
25:04que ele tem
25:05a essas coisas
25:06enquanto ainda
25:08está vivo.
25:10Esse é o nosso desafio.
25:12Eu,
25:13que tinha uma velha idade,
25:14que eu falo
25:15pouco sobre ela,
25:16mas acho
25:17que os telespectadores
25:20vão entender.
25:20eu,
25:23na elite
25:23de atores brasileiros,
25:25se me permitem
25:26a imodéstia,
25:28eu sou o único
25:30de formação rural.
25:33Eu sou o único
25:33caboclo
25:34que virou ator.
25:36O único.
25:37Eu pensava mesmo
25:38em ser
25:39fiel a eles,
25:41ao Brasil profundo.
25:43Em ter,
25:43de certa forma,
25:44em todos os meus trabalhos,
25:45dizer a eles,
25:46olha,
25:47eu estou aqui,
25:48mas sou como vocês.
25:49e eles ser sempre
25:51como vocês.
25:52E não vou fazer feio.
25:54Não vou ser um bobo
25:55ao lado deles,
25:57que serão todos
25:58muito grandes.
25:59E eu,
26:00um bobo,
26:02vou estudar
26:03e vou aprender
26:04e vou trabalhar
26:05e vou chegar
26:06para e passo
26:07com eles
26:08onde quer que eles cheguem.
26:11Ser ator é
26:13equilibrar-se
26:15sob uma linha
26:16inconsúltio
26:17e frágil
26:18que me dê
26:19a fantasia
26:20e a realidade
26:21com cuidado
26:23para não despencar
26:24numa
26:24onde
26:26habitam
26:27só os realistas
26:28ou noutra
26:30onde habitam
26:31só os delirantes
26:33e ficar
26:34se equilibrando ali.
26:36Eu acho que isso
26:37é ser ator.
26:38Eu acho que isso
26:40é um bobo
26:41para não despencar
26:42para não despencar
26:43para não despencar
26:43Legenda Adriana Zanotto