No podcast Pensar, do Estado de Minas, Carlos Marcelo e Paulo Nogueira entrevistam Eduardo Moreira, do Grupo Galpão, sobre a nova adaptação de Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. A peça celebra os 30 anos do livro e estreia como um dos projetos mais ousados do grupo teatral mineiro.
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NotíciasTranscrição
00:00Olá, eu sou Carlos Marcelo, este é o podcast do Pensar, o espaço de ideias e livros do
00:06Estado de Minas.
00:07A gente vai conversar hoje sobre um livro que está completando 30 anos e foi adaptado
00:12por um dos grupos teatrais mais importantes do Brasil.
00:16Lembrando que todo o conteúdo do nosso podcast e também da nossa edição impressa fica
00:21disponível no nosso site em.com.br.
00:25Então eu vou começar a nossa conversa aqui trazendo o Paulo Nogueira, que vai tocar comigo
00:30essa conversa com o Eduardo Moreira.
00:33Ele vai ler pra gente, ele que é um dos fundadores do Grupo Galpão, vai ler pra gente um trecho
00:37do livro Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago.
00:41Que faço eu se a minha maior preocupação é evitar que alguém se aperceba de que vejo?
00:47Alguns irão odiar-te por veres.
00:50Não creias que a cegueira nos tornou melhores.
00:53Também não nos tornou piores.
00:56Vamos a caminho disso.
00:58Vê tu só o que se passa quando chega a altura de distribuir a comida.
01:03Precisamente uma pessoa que visse poderia tomar a seu cargo a divisão dos alimentos
01:10por todos os que estão aqui.
01:12Fazê-lo com equidade, com critério.
01:15Deixaria de haver protestos.
01:17Acabariam essas disputas que me põem louca.
01:21Tu não sabes o que é ver dois cegos a lutarem.
01:25Lutar foi sempre, mais ou menos, uma forma de cegueira.
01:29Isso é diferente.
01:31Farás o que melhor te parecer.
01:33Mas não te esqueças daquilo que nós somos aqui.
01:37Cegos.
01:38Simplesmente cegos.
01:40Cegos sem retóricas, nem comiserações.
01:44O mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos acabou.
01:49Agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos.
01:55Se tu pudesses ver o que eu sou obrigada a ver, quererias estar cego.
02:02Acredito, mas não preciso.
02:04Cego já estou.
02:07Seja bem-vindo, Eduardo.
02:08Muito obrigado.
02:09Vai ser difícil a gente superar esse início, com essa leitura arrebatadora desse trecho
02:14que é tão marcante do livro do Saramago.
02:16Mas então essa vinha a nossa primeira pergunta.
02:18Ítalo Calvino tinha sido a primeira experiência de vocês com a adaptação de um texto que
02:22não foi feito para os palcos.
02:24Como é que se colocam marcas teatrais em uma linguagem literária como essa?
02:28Como é que é esse desafio?
02:29Ah, é um enorme desafio, passar do romance para uma forma dramática.
02:38É um desafio muito grande, porque a literatura é o espaço da liberdade mais absoluta que
02:45existe.
02:47As outras formas artísticas, acho que você já está muito atrelado à questão da imagem,
02:52de concretizar tudo aquilo que a imaginação de um autor colocou no papel, que é a suprema
03:01liberdade, é, de fato, a literatura.
03:04Nas outras formas, isso está muito mais restrito, num certo sentido.
03:09Apesar de que, entre as outras formas, o cinema, as próprias artes plásticas, eu acredito
03:14que o teatro é ele que tem também um poder de liberdade maior.
03:19E eu acho que a nossa adaptação, no caso, nós lemos muito, fizemos muitos workshops,
03:26exercícios para apresentar para o Rodrigo Portela.
03:29A gente estudou muito a obra do Saramago, não só o ensaio sobre a cegueira, mas também
03:35essa trilogia despótica dele, que é o ensaio sobre a lucidez e a caverna também, que nos
03:43trouxeram elementos muito importantes para pensar esse momento da obra do Saramago.
03:49Mas é um desafio muito grande, é um salto no escuro, de fato, você transpor para uma
03:55forma literária, para uma forma dramática, requer muito estudo, muita pesquisa.
04:02No caso, depois desses primeiros estudos, a gente fez também todo um trabalho musical
04:08anterior, isso foi feito no ano passado.
04:11Então, eu acredito que isso imbuiu muito o Rodrigo Portela das atmosferas que nós
04:16queríamos, que ele queria também para essa adaptação, mas antes de a gente começar
04:21esse processo de três meses de ensaio na sala direto, mergulhado na sala direto, ele
04:27já trouxe uma ideia de uma adaptação e que 90% dessa adaptação é a que está pronta
04:36hoje, que é o espetáculo pronto.
04:39Paulo, o Saramago fala muito sobre o processo de criação do ensaio sobre a cegueira nos
04:46cadernos de Lanzarote, conta para a gente um pouco o que ele revela sobre, como foi
04:50esse processo de criação do livro.
04:52Exatamente, nos cadernos que ele começou a escrever, na verdade são diários sobre
04:58o cotidiano da vida dele, que ele começou a escrever em 93, foram vários, e terminou
05:04em 2009, um ano antes da morte dele, e uma coisa que chama muito a atenção é o drama,
05:11a palavra é essa mesmo, o drama que foi para ele escrever o ensaio sobre a cegueira, que
05:17ele teve a ideia quando ele estava almoçando num restaurante em Lisboa, aí se todo mundo
05:22ficasse cego, teve essa ideia, mas entre a ideia, isso em 91, no fim de 91, e ele desenvolver
05:30isso, ele concluiu o livro, que foi em 95, ele mesmo fala nos cadernos, durante três
05:38anos ele conseguiu escrever 50 páginas, e depois, em menos de um ano, ele escreveu as
05:44outras 260 e tantas, e aí ele fala da dificuldade, desse processo, a monstruosidade que ele estava
05:52criando.
05:53Então, são vários aspectos, além da falta de tempo, que ele tinha uma agenda superlotada,
05:58ele fala assim, travou na história, todo mundo cego na história, como é que essa
06:04história pode andar, todo mundo cego, literalmente não tem um caminho, até um dia ele teve
06:14esse insight, que na verdade, usando uma licença literária, foi a mulher do médico que teve,
06:21como se ela tivesse se recusado a ficar cega para conduzir a história, então a partir
06:26desse insight, ele conseguiu deslanchar com a história, mas teve outros especílios,
06:32a questão dos nomes, que ele decidiu que nenhum personagem, como ele diz, ele não
06:36chamaria nem Maria, nem Antônio, nem José, então também não teria nome, que seria
06:40outra dificuldade, então foi um longo processo, até ele concluir o livro, que mostra que
06:50caminho que ele seguiria ou não seguiria.
06:54Então, diante desse contexto, essa falta de nomes, essa dificuldade de personagens
06:59cegos, de atores se transformarem em personagens cegos, como é que foi esse processo da montagem
07:04do Galvão?
07:05O Galvão também teve essa dificuldade.
07:07E vocês também passaram por algum tipo de bloqueio, que nem o Saramago teve, nesse
07:11processo de criação, teve momentos que vocês acharam, não, isso aqui é intransponível,
07:14como é que a gente vai resolver isso, pegar um outro caminho?
07:16É, eu acho que teve vários momentos que a gente teve, de fato, essa dificuldade, uma
07:20opção que a gente teve é que a gente não faria um mimetismo da cegueira, nós,
07:27na verdade, enquanto atuamos e interpretamos, estamos o tempo inteiro vendo, é claro que
07:33a gente tem esse dispositivo das vendas que são usadas, o público que é convidado
07:39a participar, e alguns momentos também, como na cena das mulheres, a cena do estupro, elas
07:46vão para o outro alojamento dos mafiosos, dos bandidos, vendadas, então a gente usa
07:57esse recurso da venda, mas, durante o espetáculo todo, a gente está vendo, a gente não mimetiza
08:03a cegueira, mas é realmente um romance muito difícil, ele é um épico, de fato, é um
08:14castelo muito bem construído e muito desafiador, eu acho uma coisa que me chama muito a atenção
08:22do ensaio sobre a cegueira, como o Paulo já se falou, ele foi lançado em 1995, portanto
08:32faz 30 anos dessa obra-prima do Saramago, e como esse romance fala cada vez mais ao
08:40nosso mundo, o Saramago escreveu isso, nós não tínhamos nenhuma perspectiva de viver
08:45uma pandemia, a gente não tinha perspectiva ainda das redes sociais, dessa coisa das fake
08:54news, dos discursos de ódio, toda essa separação que a sociedade está vivendo, essa polarização,
09:02todo esse momento político extremamente difícil, com uma ascensão de um discurso
09:07de ódio muito forte dentro da manifestação política, onde a gente também está vivendo
09:17uma crise da democracia, a democracia chegando numa situação realmente de impasse, com
09:25a vitória de autocratas, todo esse tipo de coisa, e que eu acho que tudo isso está muito
09:29presente nesse enorme edifício construído, sob a égide dessa metáfora da cegueira,
09:37que o Saramago constrói, me parece que de 1995 para cá, nós ficamos muito mais cegos,
09:45e estamos realmente diante de um terrível impasse.
09:49A gente vai falar mais sobre essa cegueira metafórica, e na peça literal, mesmo que
09:54momentânea, daqui a pouco, mas eu queria voltar um ponto, você acabou de falar que
09:58é um enorme edifício esse livro, o que vocês tiveram que retirar, quais andares vocês
10:05tiveram que retirar desse edifício, sem retirar os andares, o que foi particularmente
10:09penoso, porque obviamente não seria possível adotar o livro na íntegra, então como é
10:14que foi a decisão, do que incluir e do que excluir do livro que vocês tomaram, junto
10:20com o Rodrigo, que é o autor da dramaturgia, que trabalhou depois com vocês, o Rodrigo
10:23Portela, para quem não sabe, diretor e dramaturga, que assina esse espetáculo e fez essa proposta,
10:28ele que chegou e fez essa proposta para vocês, e vocês encamparam de imediato, mas enfim,
10:33eu queria que você falasse um pouco sobre isso, porque eu imagino que assim que o Rodrigo
10:36fez essa proposta, vocês voltaram ao livro, e aí certamente viram isso que o Paulo destacou,
10:42que é um livro também construído em bases muito sólidas, e que se você tira uma peça
10:46às vezes pode desmoronar tudo, então como é que foi esse processo?
10:50Eu acho que a adaptação é profundamente fiel ao livro, ela vai no passo a passo da
10:56história, só que a gente viveu um impasse, a gente suprimiu a terceira parte, porque
11:03na verdade tem a primeira parte na cidade que eles cegam, a segunda parte que eles são
11:10enviados para esse manicômio, e a terceira parte em que o manicômio desaparece, eles
11:16voltam para a cidade, e que é uma parte também extremamente dramática, acontecem situações
11:24extremamente fortes de drama, aquela situação em que a mulher que vê, a mulher do médico,
11:33ela entra num supermercado e encontra uns cadáveres de pessoas que foram tentar achar
11:39comida ali, quer dizer, a cidade está de fato um caos dominado pelo lixo, pela sujeira,
11:45cães que andam comendo tudo, tem até um personagem que era também muito caro, o Alçaramago,
11:52o Cão das Lágrimas, que aparece nessa hora, desculpa, isso tudo foi suprimido na nossa...
12:00Isso está muito no filme do Fernando Meirelles, ele privilegiou essa parte, o que torna que
12:07realmente a adaptação é sempre um novo caminho a ser tomado.
12:10Um novo caminho, exatamente, e para nós ali, o fato de a gente sair do teatro, ir para
12:17a rua, nos parece um momento em que, além de a gente contemplar essa terceira parte,
12:25que é a volta dessas pessoas confinadas para o espaço do caos da rua, no romance do Alçaramago,
12:31a gente também contempla um pouco, no nosso ponto de vista, a mensagem do Alçaramago,
12:39porque acho que o Alçaramago traz nesse romance, como um homem do século XX, um humanista
12:46que o Alçaramago era, toda a militância política dele no Partido Comunista Português,
12:52na Revolução dos Cravos, toda a ação, um homem de uma ação profundamente humanista, o Alçaramago.
13:01E acho que o que ele coloca no ensaio sobre a cegueira, para nós, claramente, era essa mensagem,
13:08que só a constituição de uma comunidade, de um trabalho comunitário, de uma ação que una as pessoas
13:18contra o individualismo, contra o consumismo, é a única possibilidade de salvação da humanidade.
13:25Eu acho que isso está muito presente na obra do Alçaramago, em geral, e especialmente nesse tríptico
13:33distópico dele, que está a caverna e está o ensaio sobre a lucidez, e essa obra maior, a obra-prima,
13:43que é o ensaio sobre a cegueira.
13:45A gente está conversando aqui no podcast do Pensar com o Eduardo Moreira, um dos fundadores do Grupo Galpão,
13:50diretor artístico, e que está falando para a gente sobre um ensaio sobre a cegueira,
13:55essa adaptação do Grupo Galpão para o romance do Alçaramago, que faz 30 anos.
14:00A gente convida você a acompanhar toda semana o site do Estado de Minas, é m.com.br,
14:06onde você tem acesso gratuitamente a todo o conteúdo do Caderno Pensar,
14:10assim como na edição impressa do jornal, todo sábado, nas bancas e para os assinantes.
14:14Paulo, você tinha feito uma observação sobre essa questão do um ensaio sobre a cegueira,
14:18isso te chamou a atenção, o fato de eles terem destacado esse numeral, esse artigo definido de um,
14:24não sei se é uma visão, o que te chamou a atenção nesse ponto?
14:27Exatamente, isso é notório, um entre parênteses no nome, que não tem o artigo,
14:35isso já denota o quê? Que é uma adaptação, como você acabou de dizer,
14:40que essa parte também trágica, tão dramática, também teve que ser suprimida.
14:45E também acho que, evidentemente, a gente tem a humildade de dizer que essa é a nossa visão
14:52do ensaio sobre a cegueira, essa grande obra do Saramago,
14:56que a gente não tem a pretensão de reter todo o conteúdo da obra,
15:02acho que outras pessoas poderiam fazer obras completamente diferentes desse romance.
15:09Então é a nossa visão do ensaio sobre a cegueira.
15:16Mas é bem fiel, mesmo tendo que suprimir, como eu iria assistir a peça,
15:22então três dias antes eu relia o livro, então eu fui comparando na medida do possível
15:27e é bem fiel, desde o início, o motorista de cara que fica cego de repente,
15:32é levado para casa, aí vem o cara que dá carona para ele, depois rouba o carro,
15:37e depois também, ironicamente, é o que fica cego, a visão do médico,
15:41que é o que atende, depois o oftalmologista também fica cego,
15:45então a adaptação é bem fiel, mesmo quem não leu a obra, acho que consegue melhorar.
15:51Agora, Paulo, você chamou a atenção para mim também antes da conversa,
15:54antes da gente começar a gravar essa conversa, a gente estava conversando, obviamente,
15:57se preparando para essa entrevista, sobre o fato de que o Saramago foi provocado
16:03por um amigo a fazer uma adaptação teatral.
16:06Qual foi a resposta dele no caderno do Lanzarote?
16:08Sim, isso é uma coisa curiosa também, que ele, num desses cadernos,
16:13ele conta que um arquiteto chamado João Campos mandou uma carta para ele,
16:19elogiando, foi o que ficou impressionado com o ensaio sobre a cegueira,
16:25e falou assim, você podia adaptar para o teatro, inclusive você, que é um grande damatur,
16:31você também, você fazer esse roteiro, você comandar essa adaptação.
16:36Aí, na resposta da carta, ele fala, não quero de forma nenhuma voltar a esses horrores,
16:43a esse cenário de horrores que já me foi muito doloroso criar,
16:46então, eu não quero voltar a isso.
16:48Alguém que tente, que tenha a ousadia de tentar essa adaptação.
16:52E aí vocês fizeram isso.
16:54Ele acompanhou também, teve uma montagem em Portugal com o grupo Urbando,
17:00com a direção do João Brites,
17:03e o Saramago, ele foi, eles fizeram depois um documentário,
17:09eu até comprei esse documentário em Lisboa,
17:11e ele acompanhou o processo.
17:14Ele gostou, ficou satisfeito.
17:16Eu tenho alguns amigos que têm falado com a gente,
17:20o Afonso Borges, que é muito próximo, foi muito próximo ao Saramago e à Pilar,
17:28e que falou que o Saramago ficaria muito feliz.
17:30Eu acredito que ele ficaria muito feliz com a nossa adaptação, sim,
17:33não obstante essas mudanças que a gente sempre é obrigado a fazer.
17:37Porque é isso, já passar para a forma do teatro é uma mudança que você precisa operar na natureza mesmo,
17:48da forma original do romance.
17:52E tem uma decisão do Rodrigo Portela, que a gente leu no programa do espetáculo ou em entrevistas,
17:57ele fala que no espetáculo os atores têm que assumir as posições de narradores e intérpretes.
18:02Isso, isso.
18:03Ou seja, eles descrevem e representam as ações do seu personagem,
18:06muitas vezes simultaneamente.
18:08Exatamente.
18:09Como é que surgiu essa ideia?
18:10E eu imagino que ela tem um extremo grau de dificuldade para realizá-la,
18:13porque você tem que levar o público a uma suspensão da realidade em dois níveis.
18:17Exatamente.
18:18Então ele ao mesmo tempo está ouvindo a narração, digamos, do livro,
18:21da narração do livro, e ao mesmo tempo vendo vocês já atuando,
18:24já o desempenho cênico para aquela cena.
18:26É, não, isso aí, para vocês terem uma ideia, nós estamos com esse abacaxi até hoje.
18:32Cada apresentação, cada encontro com a obra e com o público a partir da obra é um desafio para nós,
18:40porque o Rodrigo falava muito disso.
18:44Quer dizer, tem os momentos em que você tem uma atuação dramática,
18:48em que você aborda o personagem na primeira pessoa,
18:52eu sou o médico, eu estou vivendo ali o médico,
18:56tem um momento narrativo, que eu estou narrando aquilo que o médico está vivendo,
19:02e tem um terceiro momento que seria de um ator formulador,
19:07um ator que está formulando não só a ação do médico,
19:12mas a situação do médico dentro disso.
19:15E a gente está o tempo inteiro circulando entre esses três lugares.
19:22Então, isso dá uma dinâmica de interpretação muito interessante.
19:27Mas existe um nível de concentração extremo.
19:30Extremo.
19:31De você estar percebendo isso e de você estar conduzindo isso na medida certa,
19:37porque tem que encontrar essa medida.
19:40Quando você fala do abacaxi, que ainda não está totalmente descascado,
19:43onde é que ainda pode estar emperrando?
19:45E, obviamente, a vantagem do teatro é essa,
19:47que ele pode ser refeito todo dia e pode ser aprimorado.
19:50Qual é a maior dificuldade, então, que vocês ainda sentem?
19:53Às vezes, por exemplo, o Rodrigo aponta que a interpretação
19:57ainda está muito colada ao dramático,
20:01à primeira pessoa, de viver o personagem,
20:05que tem que distanciar um pouco.
20:07Recentemente mesmo ele me falou muito sobre a cena,
20:10que é uma cena também muito forte, da evacuação do médico.
20:14Quer dizer, que o médico ali se coloca dentro do limite da animalidade.
20:20Ele termina o texto falando que há muitas maneiras de se tornar um animal.
20:25Essa é a primeira delas, que é você não conseguir se limpar.
20:31E ali ele me pede que construa uma interpretação
20:40que é muito do ator formulador,
20:42um ator distanciado do personagem.
20:45E às vezes eu não consigo fazer isso,
20:48ou salto muito para um lado mais dramático,
20:53mais do ator fazendo o personagem na primeira pessoa.
20:58Mas é isso, é um desafio muito grande.
21:01Acho que, para nós, essa montagem é profundamente desafiadora,
21:07o que faz dela também...
21:09o que dá a ela um valor muito especial para a gente enquanto artista.
21:13Paulo?
21:14Juntando as duas questões,
21:16o que o Saramago acharia sobre essa coisa dos personagens da performance,
21:21tem um outro trecho dos Cadernos do Nazarói
21:24em que o Saramago diz
21:26que os amigos e conhecidos não pararam de me perguntar pelos meus cegos.
21:30Chegou a altura de eles, os personagens,
21:32responderem por si mesmos.
21:35Levei demasiado tempo a perceber
21:37que os meus cegos podiam passar sem nome,
21:39mas não podiam viver sem humanidade.
21:42Ele responde a essa questão.
21:45Nesse sentido, como que os atores incorporaram,
21:50como foi esse processo de interpretação do ponto de vista dos atores,
21:53essa questão da humanização?
21:55Porque é uma história terrivelmente dramática e até trágica.
21:59Como é essa humanização? Eles incorporaram isso?
22:02Como foi esse processo desde que você sentiu os atores
22:06se transformarem naqueles personagens?
22:08A gente foi tentando entender a humanidade
22:12que cada um daqueles personagens ali tem,
22:14as contradições, os desvios,
22:19porque as nossas contradições é que nos dão a humanidade.
22:23Por exemplo, em um determinado momento,
22:26a gente se deparou muito...
22:28Como fazer com que a mulher do médico,
22:31que a gente transformou o nome da personagem
22:35para a mulher que vê,
22:37ela às vezes soava como um personagem muito liso,
22:41no sentido de que ela não trazia muitas contradições,
22:44ela era muito boa.
22:46Ela não tinha muitas nuances.
22:48Mas, através da história, ela vai tendo uma transformação.
22:50Ela vai tendo uma transformação.
22:53Ela acaba matando.
22:54E dá uma solução para um grave problema.
22:56Dá uma solução trágica e profundamente...
22:59De uma crueldade profunda.
23:01Ela relata...
23:02É um dos pontos fortes da peça.
23:04É um momento muito forte.
23:05Eu pude observar os três picos dramáticos.
23:08A questão dos estupros, quando ela sai.
23:10Aquela pausa impressionante.
23:12E todo mundo esperando a volta das mulheres.
23:15Depois, quando elas se lavam.
23:17Depois, quando ela vai matar o chefe dos doutores.
23:21É nesse sentido que eu falei.
23:23Os personagens incorporais.
23:24Deve ter sido muito fonte desse processo de adaptação.
23:27Porque tem...
23:28Eu vou complementar isso que o Paulo chamou a atenção.
23:30Porque não é só a questão da cegueira,
23:32mas a questão do silêncio.
23:33A peça trabalha muito com a questão do silêncio.
23:35Ela começa, digamos, mais ruidosa.
23:37E ela vai diminuindo a frequência,
23:39diminuindo a frequência,
23:40até que...
23:41Que dá uma angústia.
23:42Que é esse silêncio,
23:43que é um dos silêncios mais perturbadores
23:45que eu já experimentei como espectador.
23:47Porque a gente fica só na imaginação do que acontece.
23:50Perdão aos nossos espectadores que não viram a peça ainda.
23:52Mas isso também está no livro.
23:54Mas é uma solução cênica.
23:55Não é isso que vai invalidar que as pessoas assistam ao espetáculo.
23:57Pelo contrário.
23:58A gente nem vai dar muitos spoilers.
24:00Mas só para dizer que também é muito simbólico
24:02essa divisão de mulheres e homens.
24:04De como as mulheres...
24:06Isso é outra leitura que pode ser feita sobre o texto.
24:09Mas me chamou muita atenção.
24:11E isso me traz, Paulo.
24:13Queria dividir com o Eduardo.
24:15Que é essa questão da experiência de parte do público.
24:18Porque é uma experiência muito imersiva.
24:19Eles escolhem antes.
24:20Eles decidem participar voluntariamente.
24:22É. Na própria compra do ingresso já tem uma separação.
24:25Se você quer comprar o ingresso da experiência.
24:29Isso.
24:30Vocês tiveram esse retorno desse pessoal?
24:32As pessoas estão gostando muito.
24:34Estão achando que é uma experiência muito interessante,
24:37muito válida.
24:40Me deu a impressão, Eduardo, sem querer,
24:43de novo voltando ao livro,
24:45é que é como se a gente estivesse levando o leitor para dentro do livro.
24:49Exatamente.
24:51E me chama a atenção também que,
24:53nessa frase que virou um lema até da peça,
24:55que é do livro,
24:57se podes olhar, vê.
24:58Se podes ver, repara.
25:00O que você reparou na reação do espectador
25:02que está indo ao palco e ficando com vocês no palco?
25:04Fica em cena praticamente um terço do espetáculo
25:06e fica ali com vocês.
25:08O que você tem reparado das reações desse espectador?
25:12E como é que se estabelece um jogo cênico com um desconhecido?
25:17Eu sinto o retorno que eu tive do público que participou
25:21é que, às vezes, é um mergulho numa experiência absolutamente sensorial.
25:28Então, muitas vezes, a pessoa perde um pouco o fio do discurso,
25:34da palavra racional
25:36e entra numa experiência de cunho essencialmente sensorial.
25:42Mas o retorno que nós temos tido
25:47é exatamente que as pessoas sentem isso
25:51como uma experiência extremamente valiosa.
25:55Porque, quando você elimina o sentido da visão,
26:00você, evidentemente, começa a valorizar os outros sentidos.
26:05O tato, a escuta.
26:09E essa experiência sensorial é uma experiência realmente muito interessante.
26:13E eu acho que nós abordamos, através do ensaio sobre a cegueira, do Saramago,
26:20uma espécie de um antídoto um pouco da nossa era,
26:26dessa era pós-moderna,
26:29de que nós estamos absolutamente inflacionados pela imagem,
26:36tudo é imagem, imagem, imagem, imagem,
26:38e não para de ver imagem.
26:40É a tela do celular nos escravizando permanentemente.
26:44As pessoas não conseguem se concentrar num texto de duas páginas.
26:50São incapazes de ler essa linguagem do TikTok.
26:54É tudo instantâneo.
26:57E, no espetáculo, nós estamos falando de duas horas e 20 minutos
27:00praticamente sem intervalos.
27:02O intervalo é dentro de cena.
27:05O intervalo dura dois minutos.
27:07A gente faz de uma maneira muito precisa o intervalo
27:12para ele virou, de fato, uma cena.
27:15E eu acho que tem esse aspecto do silêncio também.
27:18A gente está vivendo uma época de um barulho,
27:21um ensurdecedor.
27:23As pessoas falam, falam, falam, falam.
27:25É uma espécie de uma cegueira o que a gente está vivendo.
27:28Essa espera gera uma ansiedade.
27:30Dois minutos parece que foi mais.
27:32As pessoas não aguentam esperar.
27:34E aí fica esse convite.
27:36Acho que o teatro é um pouco esse lugar também
27:40do antídoto dessa nossa época,
27:43dessa inflação de imagens e a inflação de informação.
27:48As pessoas têm acesso a tanta informação,
27:51mas elas, de fato, não se informam.
27:54Não aproveitam como deveriam.
27:56Muita coisa superflua.
27:58Eu acho que está aí o cerne da distopia apresentada pelo Saramago
28:03e que, de certa maneira, reatualiza o romance.
28:08A gente está caminhando para a reta final da nossa conversa,
28:10mas eu queria destacar um aspecto do grupo de personagens
28:15que fica literalmente agrupado no momento do espetáculo,
28:19no final do espetáculo.
28:21Mas eu queria fazer uma associação com a própria existência do Galpão,
28:25que também nasce de...
28:28Podemos fazer a seguinte comparação.
28:31A sobrevivência dos personagens do Saramago
28:34só se dá com a instalação de um pacto coletivo.
28:36Exatamente.
28:37Esse pacto é também que garante a sobrevivência do Galpão?
28:40Como é que esse pacto é renovado a cada montagem?
28:43Com certeza. Eu até tratei disso no texto,
28:47falando um pouco dessa coisa.
28:49Acho que a nossa...
28:51O texto do Eduardo, para quem não sabe,
28:53está na edição impressa e também está disponível no nosso site,
28:56no am.com.br,
28:58no qual esse texto conta um pouco mais sobre o processo de criação
29:00e dessa leitura que eles fizeram do Saramago.
29:03Esse, para nós, era...
29:05O próprio Rodrigo, quando veio, falou,
29:08olha, eu só poderia fazer um espetáculo dessa natureza
29:11com um coletivo,
29:13um coletivo que se diz um trabalho de grupo, como o Galpão.
29:17Seria impossível fazer esse tipo de trabalho com um elenco,
29:21mas eu precisaria desse senso de coletivo.
29:28E, para nós, acho que isso nos hermana demais com a obra do Saramago,
29:34com a figura do Saramago
29:36e com a mensagem que está muito presente no romance.
29:39Acho que aquele núcleo de pessoas ali,
29:41o médico, a mulher do médico,
29:44a mulher dos óculos escuros,
29:47o primeiro cego, a mulher do primeiro cego,
29:52o homem do tapa-olho,
29:54eles acabam formando um grupo
29:56que depois vão até viver juntos na casa do médico e da mulher,
30:01nessa parte que eles voltam para a cidade.
30:04Eles só sobrevivem porque eles conseguem colocar um ideal coletivo
30:10acima dessa loucura,
30:14essa animalização produzida pela cegueira,
30:18por aquela necessidade de uma sobrevivência extrema
30:23que aquele grupo confinado no manicômio está vivendo.
30:28E é esse senso de coletividade que faz com que eles possam sobreviver.
30:33E ali está a grande mensagem da obra do Saramago,
30:39que tem muito a ver, como eu falei no começo,
30:42com toda essa herança,
30:45que eu acho que é o que está faltando muito no mundo de hoje,
30:48essa herança humanista,
30:50um pouco universalista também do humanismo,
30:54de um homem do século XX como o Saramago.
30:58Que hoje estaria muito mais horrorizado.
31:00Com certeza.
31:02Paulo, você acabou de reler um ensaio sobre a cegueira.
31:05Você já escreveu sobre o livro No Pensar,
31:07mas acabou de reler exatamente para a gente preparar esse especial
31:09com o Grupo Galpão.
31:11Qual a sua maior atenção nessa releitura?
31:13Olha, eu confirmaria o que o Eduardo acabou de dizer,
31:17que de lá para cá nós pioramos muito.
31:20Você acha que o livro ficou mais atual?
31:23Não, ficou mais atual.
31:25Mas talvez, se vivo fosse,
31:27o Saramago até carregasse mais na mão se fosse possível.
31:31Porque de lá para cá piorou.
31:33Essa coisa da imagética,
31:35essa cegueira,
31:37esse mar de leite, como dizem.
31:39A cegueira branca.
31:41Ele não leva para a escuridão, interessante isso.
31:43Em nenhum momento ele leva a cegueira para a escuridão.
31:45De forma nenhuma.
31:47Mar de leite, cegueira branca.
31:49Então houve um agravamento.
31:51Lendo a obra hoje,
31:53acho que o Saramago viveria um drama muito maior,
31:57como você acabou de dizer.
31:59A situação piorou.
32:01A rede social, esse excesso de informação,
32:03de imagem, mas na hora que você vai filtrar,
32:05não sobra nada.
32:07Inclusive na questão da leitura de lá para cá,
32:09piorou.
32:11Hoje a dificuldade que as pessoas têm
32:13de interpretação de texto.
32:15Você falou duas páginas, eu diria até menos.
32:17Eu acho que um parábio,
32:19duas parábios,
32:21não tem paciência.
32:23E quando tem, às vezes não consegue entender
32:25o que está lendo.
32:27Eu sou leitor há muitos anos,
32:29há décadas,
32:31e eu tenho percebido isso.
32:33Não é só a questão do acesso.
32:35Fala-se muito,
32:37o livro está caro,
32:39não, mas a questão é mesmo com o livro em mãos,
32:41às vezes com o livro doado,
32:43o livro da biblioteca que não teve nenhum valor,
32:45você não teve que pagar nada para adquirir.
32:47Tem essa barreira ainda.
32:49Então acho que há um agravamento.
32:51E onde vai dar isso?
32:53A gente está indo agora para a nossa
32:55reta final da nossa conversa
32:57e eu vou pedir licença ao espectador
32:59que agora a gente vai dar um grande spoiler.
33:01Então se você não quiser saber como foi
33:03criada uma das soluções
33:05mais engenhosas que eu já vi
33:07no teatro recentemente,
33:09você pula isso aqui e guarda para depois,
33:11para assistir depois do espetáculo.
33:13Então agora sim eu posso falar,
33:15você que já deu pausa e não assistiu esse final,
33:17eu acho que é
33:19uma das soluções mais felizes
33:21do espetáculo, o fato de ele terminar
33:23literalmente aqui, vamos usar o literal,
33:25literalmente na rua.
33:27É uma grande surpresa para o espectador
33:29e ao mesmo tempo é uma grande conexão
33:31com a origem do Galpão.
33:33E é na rua do Galpão, quando o espetáculo
33:35aqui, pelo menos em BH, em Minas Gerais,
33:37ele vai para a rua do Galpão, ele vai para a frente
33:39do Galpão Sine Orto e é lá que esse espetáculo
33:41termina ou começa, ou recomeça
33:43com todos enxergando
33:45a realidade que nos cerca.
33:47Virou apoteótico, eu achei apoteótico.
33:49Exatamente, então é um convite que se faz
33:51e eu queria saber como é que surge
33:53essa solução, como é que vocês a adotaram,
33:55veio do Rodrigo, veio de vocês e se você
33:57concorda de que ela estabelece então
33:59uma conexão com a própria existência do Galpão?
34:01Com certeza, concordo plenamente
34:03e posso dizer,
34:05afirmar isso porque a ideia foi minha.
34:09Eu sugeri ao Rodrigo, falei,
34:11acho que a gente podia ir para a rua,
34:13porque exatamente também
34:19essa tradição do Galpão,
34:21o Galpão é muito conhecido pelo trabalho
34:23de rua, nasceu na rua,
34:25deve muito à rua
34:27e eu acho que simbolicamente é isso.
34:29Eu acho que é também,
34:31assim como a gente precisa
34:33dizer às pessoas,
34:35é preciso estabelecer
34:37essa possibilidade do silêncio,
34:39a possibilidade da leitura
34:41de um outro lugar
34:43de atenção
34:45das pessoas,
34:47é preciso também que a gente
34:49volte para o espaço público.
34:51O espaço público está muito
34:53destruído no Brasil.
34:55Eu estou vendo assim,
34:57ali um entorno, quer dizer,
34:59uma cidade como Belo Horizonte,
35:01todas as grandes cidades do Brasil,
35:03degradado, muita gente morando na rua,
35:05fazendo as necessidades,
35:07as ruas estão muito sujas
35:09e eu acho que a gente precisa reconquistar
35:11o espaço público,
35:13essa é uma questão política fundamental
35:15para todos nós.
35:17Mas então veio de você essa ideia de encerrar,
35:19de levar o espetáculo e levar o público para a rua.
35:21Eu tentei falar,
35:23eu conversei muito com o Rodrigo sobre isso,
35:25que eu acho que seria, é também profundamente
35:27fiel a ideia do romance,
35:29que já que a gente
35:31não entrou na terceira fase
35:33do romance, que é a volta
35:35desses personagens para a rua,
35:37para a cidade destruída,
35:41o fato da gente ir para a rua
35:43dá um sentido também,
35:45acho que um pouco de esperança para as pessoas.
35:47Mas ao mesmo tempo também você deixa
35:49o futuro daqueles personagens em aberto,
35:51e lá estão sujeitos a qualquer tipo
35:53de interferência.
35:55Então assim, traz um pouco
35:57de esperança, claro, por causa até da música e do tom
35:59com o qual você destacou, hipoteótico,
36:01mas ao mesmo tempo tudo está indefinido.
36:03E fica uma representação da terceira
36:05parte do livro, que acaba não sendo contemplada
36:07na adaptação de vocês.
36:09E ao mesmo tempo esse reencontro com a própria história do Galpão,
36:11especialmente aqui em Belo Horizonte,
36:13fazer isso na frente
36:15do Cine Orto,
36:17tem um significado muito importante.
36:19Com certeza, acho que tem um significado, sim.
36:21E deixa exatamente isso que você falou,
36:23a obra em aberto.
36:25Cabe a nós
36:27o futuro da humanidade.
36:29Acho que a gente está vivendo agora
36:31um impasse.
36:33Chegamos, de fato,
36:35num momento em que
36:37a própria terra
36:39está ameaçada.
36:41Essa questão da nossa
36:43sobrevivência enquanto espécie
36:45está colocada como um dilema
36:47para a humanidade.
36:49E aí as pessoas
36:51negando todo esse tipo de coisa,
36:53as mudanças climáticas,
36:55é uma coisa tão óbvia.
36:57É o não querer ver.
36:59O negacionismo é outra forma de cegueira.
37:01É a cegueira.
37:03Não quer ver.
37:05Não é possível que as pessoas não estão vendo que o clima mudou.
37:07E aí eu volto às palavras do Saramago.
37:09Ele fala, no final do livro,
37:11penso que não cegamos,
37:13penso que estamos cegos.
37:15Nós já éramos cegos
37:17antes. Ele fala isso.
37:19Inclusive, na nossa adaptação,
37:21é o meu personagem que fala.
37:23Foi preciso cegar para descobrir isso.
37:25Mas nós,
37:27todos nós, já éramos assim antes.
37:29Cegos.
37:31Desde muito antes.
37:33A gente sabe que o Galpão sempre trabalhou
37:35com a parte do improviso. Então a gente também vai pedir
37:37um improviso aqui, ao vivo,
37:39para o Eduardo. Vou pedir para o Eduardo
37:41pegar o livro e selecionar uma parte,
37:43ou aleatoriamente, uma parte que ele gosta.
37:45Para quem não sabe, o Eduardo faz,
37:47no livro, na peça, ele faz
37:49o médico, um dos primeiros, o Africarcebe.
37:51Ele interpreta nos papéis
37:53principais. Enquanto isso, Paulo, eu queria que você
37:55comentasse o seguinte. A gente vai estar agora,
37:57são 15 anos de morte de José Saramago.
38:01Você, não só já escreveu sobre
38:03este livro, e sabe sobre a cegueira, mas sobre
38:05outros livros dele também.
38:07José Saramago é o único escritor,
38:09em língua portuguesa, a receber o Nobel de Literatura.
38:11Em 1998.
38:13A que você atribui essa
38:15distinção?
38:17E como é que Saramago
38:19via os escritores brasileiros? Foi algo que você
38:21destacou também, recentemente, que está muito presente
38:23nos cadernos de Lázaro Otti. Nós não temos,
38:25nós do Brasil, não temos, mas a língua portuguesa tem
38:27o Nobel com o Saramago. Como é que era
38:29a relação dele com os escritores brasileiros?
38:31Acho que a distinção, o prêmio,
38:33é pela qualidade
38:35da obra dele mesmo.
38:37O Eduardo falou
38:39em um ensaio sobre a cegueira,
38:41o Evangelho segundo Jesus Cristo,
38:43que é a obra, por incrível que pareça,
38:45essa não é a obra mais polêmica,
38:47é o Evangelho segundo Jesus Cristo,
38:49por razões óbvias,
38:51que ele mexeu com os católicos,
38:53mexeu com a fé.
38:55Essa trilogia,
38:57entre aspas,
38:59uma espécie de sequência, ensaio sobre a lucidez,
39:01a caverna.
39:03Então, acho que o prêmio
39:05demorou, demorado demais,
39:07para chegar. Muitos outros autores
39:09de língua portuguesa, brasileiros, merecem.
39:11Mas ele, eu acho,
39:13no caso do prêmio, do Saramago, é uma questão
39:15humanista mesmo.
39:17E a relação dele com os brasileiros?
39:19Essa coisa dele demonstrava esse
39:21dramalhão, essa perdição
39:23que está a humanidade.
39:25Quanto aos brasileiros, o que tem que destacar
39:27nos cadernos da Naroto, principalmente,
39:29o autor mais citado
39:31tem o João Cabral de Melo Neto,
39:33que inclusive, cotado para o
39:35grande poeta.
39:37Tem até esse comentário
39:39no livro também,
39:41uma hora que fica para e passo
39:43entre o João Cabral, o Jorge Amado
39:45e o Saramago.
39:47O João Cabral
39:49é muito destacado, mas o mais
39:51lembrado, que era amigo pessoal
39:53do Saramago, é o Jorge Amado.
39:55Tem um trecho do livro que ele
39:57fala que Jorge Amado é a voz
39:59do Brasil, é a alegria,
40:01é o exemplo que é o brasileiro,
40:03é a representatividade do brasileiro, de raça,
40:05de tudo. Então, ele faz uma verdadeira
40:07exaltação ao Jorge Amado,
40:09que é o principal autor destacado,
40:11que eu observei.
40:13Os mais citados é esse,
40:15o João Cabral e, principalmente, o Jorge Amado.
40:17Excelente. A gente convida, então, vocês a ler
40:19novamente ou reler,
40:21ler ou reler
40:23José Saramago nos cadernos de Lanzarote,
40:25ler Ensaio sobre a Cegueira,
40:27quem não via é uma experiência única,
40:29para reler também.
40:31E, claro, convido a vocês
40:33para assistir ao espetáculo
40:35Um Ensaio sobre a Cegueira,
40:37com o Grupo Galpão, que certamente, depois da temporada
40:39de Belo Horizonte, vai seguir pelo Brasil.
40:41Eu imagino que é um espetáculo que vai ter
40:43uma vida longa.
40:45Com certeza. Como todos os espetáculos do Galpão,
40:47ele entra num repertório
40:49e a gente já vai fazer uma temporada,
40:51a nossa temporada fica aqui
40:53até dia 1º de junho,
40:55portanto, mais duas semanas.
40:57Em agosto, a gente vai fazer
40:59uma temporada de três semanas no Rio,
41:01em janeiro, e, em outubro,
41:03uma temporada também em São Paulo.
41:05E vamos a Porto Alegre também,
41:07é certo, essas cidades por enquanto,
41:09mas aí o Galpão começa a circular
41:11e o espetáculo entra no repertório
41:13e a gente espera
41:15poder levar.
41:17Eu tenho muita confiança de que a gente vai conseguir
41:19ir a Portugal com esse espetáculo
41:21e apresentar a Europa
41:23também esse espetáculo,
41:25porque acho que ele é um espetáculo que realmente
41:27vale a pena, gostaria muito de ter
41:29esse retorno
41:31dos portugueses.
41:33Os portugueses tem horas que se implicam um pouco
41:35com o Saramago,
41:37principalmente por conta de que o Saramago
41:39depois foi para a Espanha,
41:41mas é um autor extraordinário mesmo.
41:47Eu gostaria muito de ter esse retorno.
41:49E um autor extremamente português também.
41:51Acho que ele tem
41:53um humor, um jeito de ver
41:55o mundo que me lembra muito
41:57os portugueses.
41:59Ele fazia questão sempre de prezar pela língua,
42:01do idioma que mantém.
42:03Valorizava muito
42:05essa questão da língua.
42:07Implicava no Brasil com certos termos
42:09e achava que distorcia da língua.
42:11Exatamente. E exigiu que no Brasil
42:13fosse lançado em português
42:15de Portugal. Sem adaptação.
42:17Sem adaptação,
42:19essa coisa da normatização
42:21da língua, que foi uma coisa que
42:23privilegiou muito o brasileiro,
42:25o português brasileiro.
42:27Os portugueses às vezes reclamam um pouco disso.
42:29Bom, então para a gente encerrar,
42:31a gente convida vocês novamente
42:33para ler
42:35e ver no nosso site
42:37em.com.br
42:39a transcrição dessa entrevista
42:41com o Eduardo Moreira,
42:43um dos fundadores do Grupo Galpão,
42:45na edição impressa do Estado de Minas.
42:47E sempre, todo sábado,
42:49você pode atualizar no nosso site,
42:51que vai ter conteúdo novo do Pensar,
42:53com a discussão de ideias, de livros,
42:55resenhas e outras discussões da atualidade
42:57no nosso espaço semanal
42:59de ideias, livros e discussões
43:01no Estado de Minas. Para encerrar, então,
43:03a gente vai voltar ao começo,
43:05como nós iniciamos este podcast,
43:07com a leitura do Eduardo Moreira
43:09para um trecho do livro,
43:11não da peça, não da marcação da Sêneca,
43:13e sim do livro
43:15Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago.
43:17Eu peguei aqui o acaso,
43:19no momento em que eles
43:21deixam o manicômio,
43:23e diz-se a um cego,
43:25estás livre,
43:27abre-se-lhe a porta
43:29que o separava do mundo, vai,
43:31estás livre,
43:33tornamos a dizer-lhe, e ele não vai,
43:35ficou ali, parado,
43:37no meio da rua, ele e os outros
43:39estão assustados,
43:41não sabem para onde ir,
43:43é que não há comparação entre
43:45viver num labirinto racional,
43:47como é, por definição,
43:49um manicômio, e aventurar-se
43:51sem mão de guia,
43:53nem trela de cão,
43:55no labirinto dementado da cidade,
43:57onde a memória para nada
43:59servirá, pois apenas
44:01será capaz de mostrar a imagem
44:03dos lugares, e não os caminhos
44:05para lá chegar."
44:07Essa coisa
44:09da liberdade também,
44:11um desafio da liberdade,
44:13que eu acho que é uma coisa que a obra do Saramago
44:15coloca de uma maneira radical
44:17e profunda,
44:19realmente extraordinária.
44:21Com este convite,
44:23ou melhor, com essa incitação à liberdade,
44:25a gente encerra essa conversa
44:27com o Eduardo Moreira, com a participação do Paulo Nogueira,
44:29eu sou o Carlos Marcelo,
44:31a gente agradece a vocês por ter nos assistido,
44:33por ter nos enxergado,
44:35e a gente volta em breve com mais uma edição
44:37do podcast do Pensar. Até lá.